Crianças em UTIs, mães sofridas

Margareth Grilo - repórter

Joana Darc não esquece o dia em que levou o filho Artur, com seis meses de vida, às pressas para o hospital. Ele tinha dificuldades de respirar. Ficou oito dias internado. Três meses depois veio uma segunda crise respiratória. Estava de volta ao hospital. Desta vez, da emergência ele passou à Unidade de Terapia Intensiva. Foi entubado. Meses depois foi submetido a uma traqueostomia. No dia 20 de dezembro de 2010 completou 3 anos. Como toda criança, teve direito a bolo, presentes e parabéns pra você. Entre os convidados, além dos familiares, estavam enfermeiros e médicos - todos da equipe do Hospital Infantil Varela Santiago, onde ele chegou ainda bebê e não saiu mais.


fotos:júunior santosNa UTI de um dos hospitais da rede pública João (nome fictício)  acompanha tudo com o olhar. Nada lhe passa despercebidoNa UTI de um dos hospitais da rede pública João (nome fictício) acompanha tudo com o olhar. Nada lhe passa despercebido
Vítima de atrofia espinhal, está há dois anos e seis meses preso ao leito de número 03 da UTI. Artur se comunica com o olhar e com os dedinhos da mão direita. Joana D’arc Alves da Silva – a mãe de Artur - compreende ao menor gesto ou olhar o que o filho deseja. “Ele interage muito bem. Entende o que se passa a sua volta. Fica feliz quando estou por perto. À noite quando vai dormir pede pra eu ficar segurando o pé dele”. Aos 26 anos, ela vive em função de Artur.

A vida mudou. Os planos foram interrompidos. Há um ano separou-se do pai de Artur. Foi preciso reorganizar a dinâmica familiar, até porque tem um outro filho – Kauan, de cinco anos - que cobra sua presença, carinho e atenção. “Tenho que conciliar o tempo entre Artur, que precisa muito de mim, e Kauan que sofre com a ausência, se sente só e reclama. Essa cobrança é muito ruim”, relata. Joana D’arc pertence a um universo invisível para quem está só de passagem por um hospital. As mães de UTI, como ela, são mulheres que saem pela porta da maternidade sem seus filhos nos braços ou se veem obrigadas a devolvê-los aos cuidados da medicina, como no seu caso. 

Emocionada (por vários momentos, chorou durante a entrevista) ela conta que, todos os dias, pede a Deus que lhe dê força para continuar presente na vida dos dois. “Sou uma pessoa extrovertida, mas por dentro só Deus sabe o que passa. É muito difícil saber que meu filho não vai sair daqui, a não ser quando Deus o levar. Mas não posso me entregar. Minha vida continua, por eles. E a responsabilidade é só minha”, diz, enquanto para para se acalmar.

O aniversário de Artur é sempre um misto de choro e a alegria.  “Faço questão de no aniversário dele e nessas datas comemorativas estar com ele. Não sei se ano que vem ele vai estar entre nós”, diz ela, dando uma pausa pra se recompor. Minutos depois, continua: “Meu maior desejo era que existisse uma cura para doença do meu filho”.

Além do drama de ter um filho na UTI há mais de dois anos, sofre com as dificuldades da rede pública de saúde. Há dias, Artur aguarda para fazer uma ultrassonografia. Como não pode sair do hospital, o equipamento precisa ser deslocado até o hospital, mas não há previsão pra que isso aconteça. “O médico já disse que se ele não fizer o exame pode morrer porque não tem como diagnosticar o problema e fazer o tratamento adequado”.

A angústia de conviver com a dúvida

Aos 19 anos, Carla Santana dos Santos teve a vida suspensa pela ameaça permanente que paira sobre seu filho. Não tem vida fora da UTI do Hospital Maria Alice. Lá está o que tem de mais precioso: Kayke Kelvin, um bebezinho de 6 meses. Preso ao leito 06, há três meses, fora o tempo de internação em outros hospitais, Kayke teve um cisto pulmonar. Antes, o garoto teve internado um mês no Hospital Walfredo Gurgel.

“Estou dentro de hospital com ele desde o dia que ele nasceu”, conta Carla. Segundo ela, logo no primeiro mês de vida Kayke apresentou uma dermatite, seguida de problema respiratório. Inicialmente, o diagnóstico era de uma pneumonia. Ele fez vários tratamentos e nebulizações, sem melhoras. Veio a internação e um raio-x identificou um cisto broncogênico. Em quatro meses, o garoto passou por duas cirurgias – para a retirada do cisto e do lóbulo superior e médio do pulmão direito, em decorrência de uma fístula pulmonar. Hoje, Kayke está na UTI, com dreno torácico e suporte de oxigênio. 

Apenas o pulmão esquerdo funciona bem. Kayke aguarda nova cirurgia para retirada do lóbulo inferior do pulmão direito, que já apresenta fístula pulmonar, e limpeza da cavidade pulmonar.  É um quadro estável, mas com prognóstico delicado, que exige muitos cuidados, dizem os especialistas.“

No começo Carla Santana ficou desesperada. Com o passar dos dias e meses a dor deu lugar a angústia. “Hoje o que mais me deixa angustiada é que os médicos não explicam direito o quadro de saúde dele, o que vão fazer. Tenho medo que ele morra de uma hora pra outra”, diz a jovem, que não sai do lado do filho. Ele sente e cobra a presença da mãe. “Eu converso com ele, faço carinho, evito chorar perto dele. Quero que ele veja e sinta que estou perto dele”.

As enfermeiras comentam – conta a jovem – que sempre que ela sai, por alguma razão (para almoçar, tomar banho ou mesmo dormir um pouco) Kayke chora bastante. Hoje, Carla vive na Casa do Aconchego – uma área modesta montada pelo hospital Maria Alice para apoio às mães que tem filhos em UTI. Divide o único quarto, com outras mulheres na mesma condição. Tem noite que sai do lado do filho às 22h.

 “Minha vida era tranquila, eu trabalhava como babá. De repente mudou tudo, quase não vou pra casa. Vivo pra ele e não tem como ser de outra forma. Prefiro ficar aqui, perto dele, do que em casa, pensando o tempo todo se ele está melhor, se piorou. Sei que minha força ajuda ele a ficar bem”, conta a paraibana, que mora em Natal desde o nascimento de Kayke. É evidente a calma do garoto quando ela está por perto. Carla diz que se angustia com a gravidade do quadro de saúde do bebê e, às vezes, se desespera. “Sei que não posso me desesperar. Isso não é um sonho que vou acordar e vai estar tudo bem. Tenho que viver essa realidade, mesmo que seja difícil”, constata ela, entre lágrimas. A angústia aumenta quando vê outras mães saindo com seus bebês, já sadios. “Nós continuamos aqui. É doloroso, mas se tiver que ficar por aqui seis, sete meses ou mesmo o tempo que for, eu fico. Só quero que ele saia daqui com saúde”.

bate papo - Luciana Carla Barbosa de Oliveira  » psicóloga do Hosped da UFRN

O que produz o contato da mãe com o bebê?

É essencial a presença da mãe ou de alguém que tenha uma relação significativa de vínculo com a criança porque a criança se sente segura. A hospitalização já é um processo traumático, com uma quebra do desenvolvimento então se a criança não tem esse apoio fica mais difícil pra ela.

Quando a hospitalização é superior a dois meses como amenizar as angústias, o sofrimento da mãe?

Nós procuramos, através da psicologia, diminuir esse sofrimento e trazer para o ambiente hospitalar propostas de intervenção, para a mãe e para a criança, que ajudem a tornar esse ciclo minimamente traumático. Muitas das mães não tem suporte emocional para aquele momento. Na verdade, a mãe adoece junto com a criança. 

Como trabalhar a criança e a mãe?

Nós procuramos trabalhar com o lúdico, utilizando instrumentos da rotina da hospitalização no brincar. Nesse momento, observamos como a criança está lidando e compreendendo essa nova realidade.Elas estão num ambiente estranho, ligado a dor, com pessoas que não conhece, então tudo que fizermos para nos aproximarmos delas e das mães, vai ajudá-las a entender esse universo e se adaptar mais facilmente.

Como ficam o desejo e os sonhos dessa mulher?

Essa mãe tem uma vida de renúncia, a partir do momento que o filho entra numa internação prolongada, seja ela em UTI e enfermaria. Naquele momento, o filho é o que importa. Ela deixa de ter uma vida lá fora. Muitas vezes, dependendo do tempo e da patologia, ela se sente culpada, fica fragilizada e deprimida. O importante é fazer um bom acolhimento dessa mulher; procurar ajudá-la a se reorganizar; e fazer um trabalho para reduzir a depressão, que existe em muitos casos.

Nessa situação de enfrentamento da morte e de muitos conflitos internos e externos, como essas mulheres podem reencontrar o equilíbrio?

Primeiro de tudo, é imprescindível que ela tenha um suporte familiar. Se a relação não está fragilizada, ela consegue passar por essa fase de hospitalização do filho, de forma mais tranquila. Mas, em muitos casos, o divórcio acontece, ela se desestrutura e ai precisa ter orientação psicológica e emocional. O apoio da família, o fato de ter pessoas que possa ajudar revezando no hospital, isso pode ajudar muito.  

Que consequências pode ter o abandono de bebês por suas famílias?

Acontece o que chamamos de sensação de abandono. A criança em longa internação que perde o contato com a família, principalmente com a mãe, fica extremamente insegura e é comprovado que ele demora mais a aceitar o tratamento. Na maioria das vezes, se os pais não estão por perto a criança não adere ao tratamento. Os pais precisam ter consciência de são co-responsáveis.

Mulheres com alma marcada pelo sofrimento

Qualquer um que venha a conhecer uma UTI, e não só de passagem, sabe do que Joana D’arc e Carla estão falando. Criança em UTI é sinônimo de mães angustiadas, ávidas por felicidade ao lado dos filhos. É uma experiência única, que marca indelevelmente a alma humana. Foi assim com Aline Medeiros.

“É muito difícil ter um filho internado na UTI. São momentos solitários, que a gente precisa  aprender a lidar com os próprios limites”, diz a enfermeira Aline Medeiros 28 anos. Há exatos oito anos, ela precisou largar tudo, para cuidar do filho, um recém-nascido prematuro, na UTI da Maternidade Januário Cicco. 

“Imagine eu mãe de primeira viagem, com 20 anos, e um filho prematuro. Fiquei apavorada, a cabeça ficou a mil, mas tinha que me ligar, ficar atenta somente a ele. E tive que dar conta de tudo sozinha porque naquele tempo não tinha acompanhante”, relembra. O drama levou Aline a seguir carreira na enfermagem. Hoje está do lado oposto, orientando mães de UTI.

Oito anos depois, sadio e bem esperto, Renan sempre pede para conhecer o lugar onde ficou por três meses. “Levo foto das crianças e ele fica curioso, quer vir. Um dia vou trazer”, diz ela. Aline se especializou na assistência Neonatal e hoje é voluntária na maternidade onde o filho nasceu.

Equilíbrio

Para Joana D’arc, outra dificuldade é saber equilibrar a atenção que dá a Artur, o pequeno internado, e os cuidados que precisa ter com Kauan. Em casa, ele cobra a presença da mãe,  carinho e atenção. E sempre faz planos para quando o irmão voltar. “Ele fica fazendo planos, diz que vai ensinar Artur a correr de bicicleta. Eu fico sem saber como agir, o que dizer. É muito difícil”. Nos primeiros meses da internação, Joana ficou direto no hospital, mas há meses resolveu se dividir entre a casa e o hospital. 

Na quarta-feira, 30, ela passaria a tarde e a noite ao lado de Artur. “Aqui ou em casa, sempre vai estar faltando alguma coisa. Ninguém sabe como é essa dor”. Artur respira com suporte de ventilação mecânica e dreno. No dia da entrevista Artur já estava há 26 dias sem se alimentar e, por isso, está submetido à um dieta parenteral, o que aumenta a preocupação da mãe e da equipe médica.

Nessas horas, Joana D’arc não sai de perto. “Ele só tem a mim para defendê-lo, para cobrar uma boa assistência pra ele. Em nenhum momento penso em sair do lado dele. Tem três dias que estou direto”, conta. Sem ter como trabalhar, Joana tem ajuda da mãe e do atual companheiro – o pai de seu primeiro filho. “Tem dias que a ficha cai e choro tanto, mas não deixo que ele veja. Sei que ficaria triste. E ai me recomponho pra seguir em frente”.

Dicas  - Questione sempre. 

Você pode e deve questionar bastante, mas confie na equipe.

A informação sobre seu bebê deve ser pesquisada sempre com o médico dele. Cada caso é um caso. Cada criança (até com o mesmo caso clínico) é de um jeito e responde aos remédios de maneiras diferentes. 

Ame seu bebê.

- Cante para seu bebê. Repita as frases e músicas que você cantava durante a gestação, assim ele se sentirá mais seguro. 

- Converse com ele, isso faz com que ambos fiquem tranquilos e unidos.

- Algumas UTIs permitem a entrada de livros. Se puder, leia coisas otimistas, conte histórias. Isso ajudará a distraí-la e a acalmar o bebê. 

- Quando for ver seu bebê, procure não chorar perto dele, assim ele não perceberá seu desespero e insegurança, naturais e esperados nessa situação, e se sentirá mais confortável.

Tenha atitude positiva. 

[Fé + esperança = atitude positiva]. A fé é um dos mais preciosos. Ajuda a nutrir a esperança e é graças a ela você levantará cada dia com forças renovadas e vai pode agir melhor.

Não esqueça de você. 

Por mais difícil que pareça e por mais culpada que você possa se sentir, não esqueça de que se cuidar é fundamental. A criança precisa da mãe saudável, bem alimentada, forte e com a cabeça o mais tranquila possível.

Estimule o pai a participar.

- É importante para o pai saber que a mãe valoriza sua presença na UTI.

- Por mais difícil que seja, visite seu filho, mostre interesse, demonstre amor, carinho e confiança na recuperação da criança.

Dicas elaboradas com informações da “Cartilha das Mães de UTI”, do Instituto Abrace

Serviço:

Leitura “Mãe de UTI – Amor Incondicional”, de Maria Julia Miele – Editora Terceiro Nome

UTI: lugar que testa os limites de mães, pais e médicos

Na UTI de um dos hospitais da rede pública João (nome fictício)  acompanha tudo com o olhar. Nada lhe passa despercebido. Enquanto a reportagem da TRIBUNA DO NORTE esteve nessa UTI ele acompanhou os movimentos de quem passava a sua frente, observando as pessoas estranhas à equipe a qual está acostumado há seis anos. João tem atrofia espinhal, doença que atinge 1 em cada 10 mil nascidos vivos, e está preso a um leito de UTI desde o nascimento. Respira com ajuda de suporte de ventilação mecânica. Nos últimos anos, pouco vê a família, segundo relato da equipe médica, assistentes sociais e de enfermagem do hospital. A última visita da mãe foi no dia 03 de janeiro data de seu aniversário.

Essa não é a única situação. Existe, pelo menos, mais um caso semelhante. Um garoto que está há 3 anos e 9 meses no Varela Santiago, portador de anoxia. “Muitas vezes, sem esperança de que cura, a família deixa a criança aos cuidados dos médicos. Ela confia”, diz uma das diretoras do Hospital Infantil Varela Santiago, Águeda Maria Trindade Germano.

Em 30 anos de pediatria ela já viu muita coisa. “o ambiente de UTI é um lugar que testa os limites humanos. Todos - mães, pais e médicos, mesmo os mais experientes, somos testados, minuto a minuto”, diz a médica. A mulher explica, se sente dividida em relação aos outros filhos e conciliar isso é o mais difícil. Muitas não conseguem e se afastam do filho doente. 

A técnica de enfermagem, também formada em Ciências da Religião, Juna Maria Fernandes Pinheiro, diz que já viu grandes desabafos. “Nessa jornada difícil, é preciso dizer a essa mulher  que ela não está sozinha. É preciso que toda a equipe ajude a socializar essa mãe no espaço hospitalar”, orienta. Juna diz que o acolhimento deve acontecer em todos os aspectos da vida humana, principalmente o espiritual, “promovendo um diálogo da esperança para essa mulher tão fragilizada”. Segundo pesquisa  da USP, o índice de depressão e divorcio é alto. No caso da depressão, 44% das mães sofrem de depressão e ansiedade; e 70% enfrentam a separação, quando a internação do filho é superior a um ano.  

Joana D’arc sabe bem o que é isso. Há um ano se separou do pai de Artur. “Se a mulher não tiver uma base forte na relação, tudo acaba, porque no meio desse clima pesado, tenso e quando volta pra casa no dia seguinte vai meio deprimida, chorava muito. Meu marido não entendia isso e o casamento terminou”, relata.
TN online DO RN

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