Doente mental é mantido em cárcere privado no interior

Uma casa no povoado de Ponta do Mel, na zona rural de Areia Branca, sem piso, sem reboco, com instalações sanitárias precárias esconde um drama. Há duas décadas e meia, o aposentado Cícero Raimundo do Nascimento (79), se transformou numa espécie de carcereiro do filho de 45 anos, portador de doença mental, que vive confinado num quarto protegido por grades de ferro e cadeados porque falta assistência médica ao paciente. 
wilson moreno/gazetado oesteJosé Antônio vive há mais de  duas décadas em condições degradantes, confinado no quarto da casa do pai, na zona rural de Areia BrancaJosé Antônio vive há mais de duas décadas em condições degradantes, confinado no quarto da casa do pai, na zona rural de Areia Branca
O problema começou em 1986, quando José Antônio do Nascimento presenciou o assassinato de uma cunhada que estava grávida. O crime foi cometido pelo irmão dele. "Ele viu tudo acontecer e começou a ficar perturbado. De lá para cá ficou dese jeito", relata o pai.

Cícero conta que o filho ainda ficou internado por um ano. "Mas o médico disse que não tinha cura e tive de trazer para casa e o que posso fazer é cuidar dele da forma que é possível."

Sem qualquer conhecimento sobre as leis e os benefícios que são destinados a casos como o do filho, Cícero explica que precisa mantê-lo em um quarto fechado, com grade e cadeado, para que ele não se prejudique ou possa causar algum problema a outras pessoas. Deixando transparecer cansaço ocasionado pelo peso da idade, o pai de José diz fazer tudo o que é possível para manter o filho vivo. 

Cícero desconhece que manter o filho em cárcere privado é crime. Para ele, esta é a única forma de mantê-lo em segurança.

Em entrevista do jornal Gazeta do Oeste, Cícero disse que não recebe assistência de programas sociais, exceto as receitas médicas dos medicamentos de uso controlado que o filho precisa tomar diariamente. A renda para manter a casa, que inclui pagamento de conta de luz, alimentação, material de limpeza e higiene pessoal, vem da aposentadoria de Cícero e do benefício de José. "Do dinheiro que recebo ainda pago as pessoas para ajudar nas tarefas de casa e não dá para fazer muita coisa", detalhou. 

Cícero disse ter noção da necessidade que o filho tem de uma assistência melhor e de um lugar mais adequado para viver, porém ressalta que já procurou ajuda, mas nos locais onde foi apenas ouviu que o caso não tem jeito. Ele contou que a doença do filho surgiu após José presenciar a cunhada ser assassinada grávida pelo próprio irmão, que também morreu em outra ocasião. 

O dia a dia de José segue a mesma rotina. Dorme em horários que oscilam entre o dia e a noite, fala coisas sem nexo, fuma até 15 cigarros por dia, bebe muito café, fica agitado em alguns momentos e usa a rede como uma espécie de terapia para amenizar a irritação. A comunicação com o pai se restringe a pedir algo que deseja, como cigarros, comida e água. As frases são sempre curtas. "Pai, tô com fome, pai me dê um trevo (cigarro)". 

Caso alimenta debate sobre reforma psiquiátrica no Brasil

O caso de José Antônio expõe uma chaga na saúde pública e alimenta o debate sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. No dia em que a matéria foi publicada na Gazeta do Oeste, terça-feira, um relatório descrevendo 76 casos de maus-tratos a pacientes internados em instituições psiquiátricas foi entregue à representante do Brasil no Subcomitê para Prevenção da Tortura da Organização das Nações Unidas, Margarida Pressburger. As denúncias, que incluem casos de mortes de pacientes, foram recebidas pelo Observatório de Saúde Mental e Direitos Humanos da Rede Internúcleos de Luta Antimanicomial, e organizadas pelo Conselho Federal de Psicologia.

O psiquiatra Salomão Gurgel, prefeito de Janduís, afirma que no interior do Rio Grande do Norte são comuns casos como o de José Antônio Nascimento. "É uma triste realidade. Pior do que antes da Revolução Francesa, quando os pacientes portadores de doenças psiquiátricas graves eram acorrentados em hospitais. Lá, pelo menos, o espaço para esses pacientes era mais amplos", diz.

Salomão lembra que existem hoje no RN só quatro unidades para internar pacientes com distúrbios psiquiátricos. O Hospital João Machado e mais duas casas de saúde em Natal e uma outra em Mossoró. "Precisamos resgatar o atendimento em hospitais de qualidade para pacientes graves porque hoje quem está cuidando deles são a Polícia e o Ministério Público".

De acordo com a Gazeta do Oeste, a situação de José Antônio  está registrada no Ministério Público de Areia Branca. Segundo a assistente social cedida da Vara Cível de Areia Branca, Solange Rosana Gregório, o único processo existente no Ministério Público sobre este caso se refere a uma medida cautelar solicitando a pensão do doente.

Solange adiantou que na época em que o processo foi solicitado, ela chegou a visitar a casa onde José reside. "Vi que lá não há qualquer condição para que o doente seja mantido, mas essas providências devem ser solicitadas pela assistência social do município. O Ministério Público só pode agir de acordo com o que for solicitado", explicou.

do TN

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