Henrique PortoDo G1, no Rio
Foram quase seis horas de bate-papo, novo recorde da série “Depoimentos para a posteridade” do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro. O autor da façanha foi Gilberto Gil que, durante a tarde e a noite desta terça-feira (6), deixou registrado para o acervo do museu um relato ora emocionado, ora bem humorado de suas vidas pessoal, artística e política. Um exercício positivo, segundo análise do próprio músico.
"Recordar é mais do que viver. É viver duas vezes. São dimensões novas. Se foi ferida, já curou. Se foi prazer, já desvaneceu", disse o cantor baiano, que respondeu perguntas de uma banca de entrevistadores formada pelo escritor, produtor, letrista e jornalista Carlos Rennó; pelo pesquisador e antropólogo Hermano Vianna; pelo cantor, compositor e escritor Jorge Mautner; e o produtor e pesquisador cultural Marcelo Fróes, além da presidente do MIS-RJ, Maria Rosa Araújo.
Gil relembrou a infância em Ituaçu, a descoberta da música, os festivais, o tropicalismo, a ditadura e o desempenho como Ministro da Cultura do governo Lula, entre outros momentos. E disfarçou acerca da aparente memória privilegiada. "Para lembranças remotas, sou bom. Já sobre o que aconreceu na semana passada...", brincou o compositor, que completa 70 anos no próximo dia 26.
Verbo e verba
Segurou o choro pelo menos duas vezes: quando recordou o nascimento de Nara, primeira de seus seis filhos e citou sobre o show realizado no plenário da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 2003, a convite do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. "Preferi ser um ministro do verbo a um ministro da verba", destacou Gil, revelando que aceitou o cargo depois de "pensar em conjunto" com colegas como Caetano Veloso e Chico Buarque.
Segurou o choro pelo menos duas vezes: quando recordou o nascimento de Nara, primeira de seus seis filhos e citou sobre o show realizado no plenário da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 2003, a convite do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. "Preferi ser um ministro do verbo a um ministro da verba", destacou Gil, revelando que aceitou o cargo depois de "pensar em conjunto" com colegas como Caetano Veloso e Chico Buarque.
Preferi ser um ministro do verbo a um ministro da verba"
Gilberto Gil
Chico e Caetano são personagens recorrentes no testemunho de Gil. Até que o baiano relembra uma entrevista ao jornal "Folha de São Paulo", em dezembro de 2004, na qual o autor de "A banda" determina que "a canção já foi, passou".
"Entendo o que Chico quer dizer, mas não acredito que a canção vá desaparecer, vá deixar de existir. As mães, pelo menos algumas delas, vão continuar cantando canções de ninar para os filhos. É quase como a própria formação do leite nas glândulas mamárias. É algo intuitivo", disse Gil, citando o compositor Adroaldo Ribeiro Costa, autor dos hinos do Bahia e do Senhor do Bofim.
"Adroaldo compôs o tema do programa de rádio 'A Hora da Criança', que dizia assim: 'Enquanto nós cantarmos, haverá Brasil.' Então, enquanto nós cantarmos haverá canção, nação, tradição, cultura. Enquanto houver ser humano na face da Terra, estas coisas que nasceram por obra e necessidade do espírito humano permanecerão mesmo que transformadas, transmutadas e transmigradas."
A prova dessa crença pode ser traduzida por meio de sua produção contemporânea. Gil não para de gravar e lançar discos. Depois do "Concerto de cordas e máquinas de ritmo", que vai virar CD e DVD no segundo semestre, chega às lojas mês que vem a coletânea "Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga". Produzido por Marcelo Fróes numa parceria entre a Warner e o selo Discobertas, o disco reúne 14 canções do Rei do Baião gravadas por Gil ao longo de seus 49 anos de carreira. Entre elas estão "Vem morena", "Asa branca", "Juazeiro" e "O xote das meninas".
Leia trechos do depoimento de Gilberto Gil ao MIS-RJ, que estará à disposição do público nas salas de consulta do museu, na íntegra, a partir da próxima semana.
"Sou filho de um médico e de uma professora. Talvez por essa criação, cultura ou índole mesmo eu tenha sido uma criança muito comportada. Comportada até demais."
"Eu e minha irmã Gildina não frequentamos a escola primária em Ituaçu, município em que cresci, no interior baiano. A responsável por estes ensinamentos foi a nossa avó Lídia, que era formada pelo Instituto Normal da Bahia e morava com a gente. Nossa escola foi em casa, entre panelas e os artesanatos dela."
"O rádio foi minha primeira fonte de acesso à música. Ficava ligado em casa quase que o dia inteiro. Ouvíamos muito a Rádio Nacional, a Rádio Tupi e a Rádio Mayrink Veiga. Não tínhamos vitrola em casa. Então eu ouvia discos de Bob Nelson, Irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Nora Ney e Luiz Gonzaga na casa de importantes comerciantes da cidade, que já tinham o aparelho."
"Só fui para a escola quando me mudei para Salvador. Eu tinha uns 10 anos. As turmas eram enormes, era uma algazarra total. O primeiro dia foi uma aflição total. Quase desmaiei."
"Foi meu primeiro instrumento. Aprendi por causa da minha mãe. Fiz aulas particulares, dos 10 aos 14 anos, com o médico argentino José Benito Colmenero. Ele dava aulas no próprio consultório."
"O violão era de Gildina, que ganhou o violão na época da chegada da bossa nova. Logo depois de ouvir João Gilberto, comprei um método. Sempre fui muito mais interessado no instrumento do que minha irmã. Acabei sequestrando o violão dela. Mais tarde, já aos 18 anos, minha mãe me deu dinheiro e pude comprar o meu. Fui à Mesbla e comprei um Di Giorgio Author 3."
"Fui selecionado para ser trainee na Gessy Lever. Assumi minhas funções por um ano, e participei da preparação do lançamento do sabão em pó Omo. Eu gostava de trabalhar lá, era divertido fabricar sabonetes (risos)."
"Por causa da necessária resistência ao golpe, surge a chamada música popular brasileira e a famosa sigla MPB. Cheguei a fazer parte do Centro Popular de Cultura (CPC), mas no meu diálogo com a tuma comunista em Salvador, eu aparecia sempre como um viés. Eu não tinha 100% de alinhamento com as ideias deles. Então eles tinham uma denominação específica para esse tipo de gente: eles chamavam de 'linha auxiliar' (risos)."
"Eu dizia nas minhas discussões: 'Não acredito nessa utopia.' Nunca acreditei nesse grau perfeito de harmonia definitiva na sociedade humana. E isso só piorou com o passar do tempo. Sou partidário do 'caminho do meio', na igual possibilidade dos extremos. Mas o maniqueísmo da época exigia justamente estas extremidades."
"Uma vez perguntaram para o meu pai numa entrevista: 'O que o senhor acha dessa coisa do tropicalismo, com a qual o seu filho se meteu?' E ele respondeu: 'Tropicalista mesmo sou eu!' Ele era médico e tratava de doenças tropicais (risos)."
"Sempre achei que seria preso. Era uma espécie de lixo atômico. Muita coisa estava contaminada por aquele material radioativo. E viramos pode expiatório: 'Prendam o Gil e o Caetano, que essa MPB toda já fica avisada!' Éramos os alvos mais fáceis, mais imediatos. Porque os militares tinham o amplo aval de vários setores da sociedade brasileira para que fizessem aquilo."
"Foi quem unificou minha família e convocou todas as mães para o seio desta transfamília que se formou. Ela ajudou profundamente a recuperar minha amizade com minhas ex-mulheres. E foi fundamental quando eu e Sandra perdemos nosso filho Pedro (morto em um acidente de carro em 1990).
"Fiz uma reunião na minha casa para pensar na proposta. Pensei em conjunto. Chico disse assim: 'Para você pode ser uma complicação. Para nós vai ser ótimo (risos).' Não tenho nenhum arrependimento. Pelo contrário: tenho muitas boas lembranças. Sou grato ao presidente Lula e a mim mesmo por ter tido essa experiência (risos)."
"A primeira coisa que faço depois que acordo é ginástica. Faço sozinho, sem aparelhos. Diria que é um misto de ginástica e yoga. É assim todos os dias. Mas não gosto de acordar cedo. Também gosto de tocar violão. Às vezes vou ao meu escritório, para receber pessoas e conceder entrevistas. Nesta quinta (7) mesmo preciso ir até lá, pois o grande saxofonista americano Charles Lloyd, que está no Brasil, quer me encontrar. À noite, gosto de ver televisão, principalmente as séries. Adoro 'House', que já está acabando (risos). Essa novela, a 'Avenida Brasil', eu também estou assistindo. Tem personagens muito bem feitos, como é o caso da Carminha (interpretada por Adriana Esteves).Gosto de estar em casa todo o dia às 21h (risos). Vou muito pouco ao cinema, porque o cinema já está ficando muito presente na própria TV. Mas gosto dos filmes, principalmente coisas antigas que não tinha visto ainda. E gosto do futebol na televisão."
"Votarei em Marcelo Freixo (deputado estadual do PSOL) se ele for candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. Mas não vou participar da campanha. Já considero declarar voto uma forma de campanha."
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