Uma cicatriz que nunca vai sarar. É dessa forma que Maria Elayne Soares Fonseca da Silva, 19 anos, considera os 149 dias em que ficou detida injustamente no Presídio de Parnamirim, por tráfico de drogas. Uma acusação mesmo que verídica por si só já prejudica a vida do suspeito em vários aspectos. Agora imagine ter a vida virada pelo avesso por uma denúncia infundada e com isso ter que se afastar de familiares, amigos, escola, emprego e ainda "provar" inocência à sociedade que "condena" esses supostos criminosos mesmo antes da sentença da Justiça.
Elayne conta que as imagens de sua prisão não saiam de sua cabeça durante o tempo em que ficou detida. Ela informou à reportagem de O Poti/Diário de Natal que estava dormindo na casa de uma tia quando ouviu o barulho da polícia e foi olhar a movimentação na rua. "Estava em frente a casa onde eles [policiais] encontraram a droga. Como a proprietária havia fugido me pegaram como se eu estivesse envolvida com o tráfico de droga", disse.
A mãe da jovem disse ter enfrentado a pior situação de sua vida no dia da prisão de Elayne. "O pai puxava ela de um lado e os policiais do outro. Foi uma cena horrível, nunca vou esquecer", lembra. A partir daí a vida de Elayne e da família virou de cabeça para baixo. Ela foi levada para um cela no presídio de Parnamirim onde ficou detida com quase 50 mulheres. Apesar das dificuldades vividas no ambiente prisional como a ociosidade e só sair da cela uma vez por semana para o banho de sol, Elayne garante ter sido bem tratada pela diretora, agentes penitenciárias e colegas de cela.
Ausência de provas
Inquéritos sem provas substanciais e "deslizes" do Ministério Público e da Justiça ao emitir pareceres e sentenças, respectivamente, têm contribuído significativamente para o aumento de pessoas condenadas injustamente ou com falta de provas mínimas. Como boa parte dos detentos é de famílias carentes, sem condição de pagar um advogado, essas pessoas são obrigadas a esperar que um defensor público seja designado para atuar no caso.
Atualmente o Rio Grande do Norte conta somente com 40 defensores públicos, quando o número ideal seria 300. Atuando como defensor público desde setembro de 2009, Manuel Sabino, membro do Conselho Superior de Defensoria Pública, garante que uma lida mais aprofundada nos processos pode evitar o sofrimento de muitas pessoas. "O caso de Elayne não estava comigo, só conheci a história antes da audiência, mas imediatamente deu para perceber que haviam vários equívocos", assegurou.
Manuel Sabino garante que a Defensoria recebe toda semana situações como a de Elayne. Ele diz que quando não atua diretamente no caso participa por solicitação dos colegas. Diferente do defensor, Henrique César Cavalcanti - promotor de justiça há 17 anos - contou que essa foi a primeira vez que atuou diretamente em um caso de prisão injusta. "Algumas vezes não constam as provas necessárias para que aquela pessoa seja condenada. O que ocorreu com Elayne foi diferente. Bastou uma lida mais aprofundada para perceber oserros", disse.
Traumas e recomeço
Embora tenha passado momentos difíceis no ambiente prisional que, certamente, vão permanecer em sua memória durante muito tempo, Maria Elayne sempre contou com o apoio e carinho da família e amigos. Católica, a jovem parece mesmo ter sido abençoada por ter conseguido voltar à residência em que trabalha há um ano como empregada doméstica. "Graças a Deus minha patroa me conhece há muito tempo, confia em mim e por isso vou voltar", conta.
Elayne mora em uma casa simples na Zona Norte de Natal com os pais, o filho de um ano e 10 irmãos. Como o pai sofre com a osteoporose, não pode trabalhar. A responsabilidade de cuidar da família é de Elayne e da mãe, Eliene Soares da Silva, que também atua como empregada doméstica. A renda da família não chega a R$ 700, mesmo com os R$ 250 do programa Bolsa Família. Com a ida da jovem para a prisão, as dificuldades só aumentaram.
A mãe conta que o débito atual da família é de quase R$ 1 mil em três mercadinhos próximos à sua casa. Como ia toda sexta-feira visitar a filha em Parnamirim, Eliene pedia no dia anterior aos amigos e vizinhos material de higiene pessoal, biscoitos e sopas na tentativa de minimizar o sofrimento da jovem. "Quando eles não tinham, porque também são pessoas simples como nós, comprava nas mercearias, por isso estamos tão endividados", afirma a mãe.
Desespero
Ao completar quatro meses detida, Elayne disse ter entrado em desespero. Decidiu tentar suicídio como forma de aliviar a dor pela saudade do filho e da família. Por duas vezes a jovem usou uma lâmina para tentar cortar os pulsos. Para sua sorte a lâmina não estava afiada e o ato não foi consumado. "Via algumas colegas que entraram depois de mim saírem e eu continuava presa. Me desesperei", afirma.
De tanto pensar no momento em que foi detida pelos policiais e na saudade da família e dos amigos, a jovem entrou em depressão e disse ter trocado o dia pela noite. "Fui medicada e ainda estou tomando antidepressivo", garante. Da rotina no presídio, Elayne se limitou a dizer que "não tinha nada para fazer" e "dormia em um colchão no chão", conforme as demais acusadas. Duas dessas mulheres, segundo a jovem, haviam sido levadas pela polícia no lugar dos filhos envolvidos com o tráfico de drogas.
Seis anos internado no João Machado
Casos como o de Elayne deveriam ser exceção à regra, porém o defensor público Manuel Sabino, membro do Conselho Superior da Defensoria Pública, ressalta que fatos como este tem ocorrido com frequência no Rio Grande do Norte. A Defensoria Pública do Estado atende toda semana familiares de pessoas detidas em situações parecidas com a da jovem: inocentes ou com a ausência de provas consistentes que sustentem a acusação.
Em 2002, Eduardo Freire da Costa, morador do município de Pedro Velho, "curtia" com três amigos, quando o grupo foi abordado por um policial. Próximo aos jovens foram encontrados dois cigarros de maconha dentro de uma carteira de cigarros. Os "amigos" de Eduardo confessaram ter usado a droga e garantiram que os cigarros encontrados pelo policial eram de Eduardo, que negou.
O grupo foi levado à delegacia. Todos foram denunciados pelo crime de porte de droga para uso, que na época previa uma pena de seis meses a dois anos de reclusão. Os três colegas de Eduardo foram absolvidos e o jovem condenado,porém a perícia constatou que Eduardo era portador de esquizofrenia hebefrênica. Em 2003, a Justiça decidiu, então, que o rapaz deveria fazer tratamento ambulatorial da doença pelo período de um ano.
Como Eduardo nunca se apresentou para o tratamento, em 2005 a Justiça converteu a medida de segurança em internação. O problema é que o suposto crime já havia prescrito, visto que já haviam se passado três anos e o tempo máximo para a reclusão do jovem seria de dois anos. Porém, com a determinação Eduardo foi levado ao Hospital Psiquiátrico João Machado onde ficou internado por mais de seis anos - nem mesmo o indulto coletivo de Natal (perdão parcial ou total da pena) dado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2008, aos pacientes portadores de doenças mentais o libertou. O jovem só foi liberado pela Justiça para voltar ao convívio dos amigos e da família há poucos dias.
do DN
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