"Há vícios de origem na reforma do Código Penal"


Entrevista - Jacinto Coutinho e Edward Rocha de Carvalho
Adital - "Fez-se mais uma compilação do que uma verdadeira reforma", dizem os advogados Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho, ao avaliarem as propostas de reforma do Código Penal brasileiro, que tramitam no Senado e no Congresso Nacional. Para eles, a principal justificativa de "objeção" ao anteprojeto desse Código "é justamente a falta dos fundamentos, antes de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e, especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito Penal deve limitar e proteger o cidadão".

Emanuel AmaralCódigo Penal está em constante discussão após mudança
Código Penal está em constante discussão após mudança


Uma das justificativas para alterar o Código vigente, editado em 1940, é adequá-lo à nova realidade da sociedade brasileira, que se transformou gradualmente após a redemocratização. Entretanto, diante desse argumento, os advogados são categóricos: "Veja-se: afirma-se que se está a cumprir a Constituição e adequando o Código Penal - PC à 'nova realidade' (qual?), mas, ao mesmo tempo, ignora-se solenemente a importância de os crimes contra a humanidade estarem em primeiro lugar na parte especial".

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, eles assinalam que o discurso ideológico que orientou a redação do projeto de reforma do Código Penal não é limitador, "mas ampliativo, punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável quando se pretenda a reforma de Códigos passados 20 anos da promulgação da Constituição". Na avaliação deles, a reforma do Código Penal tem limites, e, se o novo texto for aprovado tal como está, a sociedade pagará "o preço por isso". "O indicativo, nessas alturas, é a presidente da República chamar para si a responsabilidade e começar tudo novamente", assinalam.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Edward Rocha de Carvalho é advogado, mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e membro da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR.

IHU On-Line - Quais são os principais apontamentos em relação à reforma penal em face do anteprojeto apresentado? Que aspectos do atual Código os juristas consideram equivocados e por quê?

Jacinto Coutinho e Edward de Carvalho - O Direito penal tem um caráter de garantia do cidadão, na medida em que ele limita o Poder punitivo do Estado. Explica-se: dependesse do Estado e particularmente dos Governos (mormente os autoritários), não haveria limites às penas e a história de abusos e arbitrariedades demonstra isso. Logo, diante da existência de condutas que precisem ser punidas, é necessário, desde logo, estabelecer quais e em que medida serão punidas. Daí o caráter de limitação do Direito penal e a premissa da qual ele precisa ser pensado. Um Direito penal limitador, enfim, que garanta o cidadão contra abusos. Ele necessita atuar sinteticamente:

1 - só em caso de extrema necessidade, quando as outras instâncias do Direito não funcionem (princípio da subsidiariedade);

2 - de forma a que não seja manipulado de acordo com interesses casuísticos (princípio da legalidade);

3- só quando exista efetiva lesão a um bem jurídico que diga respeito a pessoas humanas e não a interesses, que podem cambiar por formas escusas (princípio da lesividade);

4 - na medida da concreta responsabilidade das pessoas que tenham causado danos e necessitem ser punidas (princípio da culpabilidade).

É interessante notar que não há, no anteprojeto - e isso seria recomendável - a fixação, desde logo e nos primeiros artigos, dos princípios limitadores do Direito penal, que estão dispersos ao longo dos primeiros artigos. A questão, sabe-se, é simbólica (pois os princípios continuam lá), mas se teria um simbolismo forte com tal colocação em primeiro lugar, demonstrando a que o Código veio. Eles, por evidente, dão conta dos fundamentos; e dos fundamentos dos fundamentos. Ao que consta das próprias explicações, utilizaram critérios pouco recomendáveis como, por exemplo, a necessidade de que a parte geral do Código terminasse de forma a se manter o artigo 121 em seu lugar, deixando-se de lado a questão histórica de que os primeiros artigos da parte especial são aqueles destinados aos preceitos dos crimes de maior lesividade. Isso é relevante quando se tem em consideração os tratados internacionais atuais e, especialmente, a questão colocada pelo Tribunal Penal Internacional no que se refere aos crimes contra a humanidade. Veja-se: afirma-se que se está a cumprir a Constituição e adequando o Código Penal à "nova realidade" (qual?), mas, ao mesmo tempo, ignora-se solenemente a importância dos crimes contra a humanidade estarem em primeiro lugar na parte especial.

Vício de origem

Por outro lado, dedica-se o Código a duas vítimas de crimes violentos, demonstrando-se a priori a ideologia que orientou a redação do Código: não limitador, mas ampliativo, punitivo; e isso não é nem um pouco recomendável quando se pretenda a reforma de Códigos passados 23 anos - quase 24 anos - da promulgação da Constituição. Há, pois, vício de origem, do qual a linguagem não deixou escapar a motivação.

Uma das principais questões que podem ser trazidas como objeção ao anteprojeto de Código Penal é justamente a falta dos fundamentos, antes de tudo pelos princípios que sejam condizentes com uma democracia e, especialmente, a falta de obediência ao postulado básico de que o Direito penal deve limitar e proteger o cidadão. Do que se percebe, fez-se mais uma compilação do que uma verdadeira reforma (os modos da codificação é o título que apresenta o anteprojeto do novo Código), escamoteando-se a deficiência técnica com a ingênua alegação de que o escopo era a realidade e não as altas rodas teóricas e acadêmicas, tudo como se fossem coisas que se pudesse separar impunemente. O cotejo teoria-prática é antigo, tanto quanto obsoleto; e hoje só usado por quem não sabe isso ou imagina que todos os outros são parvos o que, em definitivo, não é o caso. O argumento, por isso, volta-se contra quem o usa. Afinal, a deficiência dele começa por pressupor que um teórico ou acadêmico ou teórico-acadêmico vive em outro mundo e não por aqui, no meio dos alunos, fazendo greves, visitando instituições como penitenciárias, foros, tribunais e outros, enfim, vivendo a vida como poucos.

Teoria X prática

Depois, conceitos como o de vida vivida e presença (entre tantos) só não são conhecidos daqueles que vivem a prática dentro de quatro paredes; e foram eles que ajudaram a colocar em crise as dicotomias, hoje altamente discutíveis, dentre elas aquela que diz respeito a teoria/prática. Mas isso é coisa que se sabia desde Marx e seu conceito de práxis. Assim, o argumento é tão disparatado -quando o assunto é tão sério como fazer um novo CP- que deve ser tomado como ingênuo. Ele, porém, é sintoma da qualidade levada a efeito no anteprojeto. Veja-se.

Sabe-se, com certa tranquilidade, quem sabe Direito penal e seus fundamentos, assim como os fundamentos dos fundamentos; e por isso seria conveniente ouvir - levando-se a sério - as pessoas altamente especializadas das Universidades, assim como aquelas que estudaram Direito penal a vida inteira. Eles não só foram esquecidos (sente-se que propositadamente: e para isso o tal argumento ajuda a concluir) como, agora, são acusados pelo que são, o que é ofensivo.

Com isso não se quer dizer que se não tinha gente (muito) boa na Comissão -e se tem boa consciência das votações envolvidas, inclusive as razões por que alguns dela saíram-, muito menos que ela não poderia ter feito o anteprojeto, mas, verdade seja dita, ela fez o anteprojeto que fez ou podia fazer, o que se não pode negar. Por evidente, seria difícil imaginar que dela saísse outra coisa que não aquilo que saiu. Há, porém, que respeitar o esforço que se fez, embora do lugar do respeito não se possa tirar a qualidade que um novo CP deva ter. Assim, era preciso ter humildade e consciência das próprias limitações de modo a se pensar no objetivo maior que era o esboço de novo CP para a nação brasileira, razão por que os grandes conhecedores da matéria acabaram fora, como sabem todos. A prática, então, imperou (mas qual prática?); e isso demonstra o caráter que regeu a elaboração do anteprojeto de Código. É uma pena porque, desse modo, não se deve aproveitar muito do que foi feito; e se for aproveitado, vai-se pagar o preço por isso. O indicativo, nessas alturas, é a presidente da República chamar para si a responsabilidade e começar tudo novamente.

Por outro lado, demonstrando o caráter pragmático e desvinculado dos estudos sobre os temas básicos foi-se a pontos estruturais como, por exemplo, com a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ora, ela é trazida como necessária à proteção da sociedade quando, como não poderia deixar de ser, sabe-se que o coletivo nada mais é, para esse efeito, que a reunião do individual e, assim, este é que deve ser protegido daquele. Faz-se, no anteprojeto, nesse ponto, exatamente o contrário do que o Direito penal deve ser: ao invés de se questionar a necessidade e a própria existência de uma responsabilidade da pessoa jurídica, parte-se do pressuposto de que ela existe, é necessária e merece sanção.

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