“Se eles vierem me expulsar, eu tenho coragem de tocar fogo na casa com todo mundo dentro”

Oficial de Justiça notificou as 65 famílias do conjunto Praia-mar e deu prazo para desocupação até 3ª feira. Foto: José Aldenir
“A situação é triste. Do jeito que os meus nervos estão, se eles vierem me expulsar de casa, eu tenho coragem de fechar a porta e tocar fogo na casa com os meus netos, filho e marido, para morrer todos, pois já sofremos tudo o que tínhamos de sofrer. Dessa forma vamos pelo menos ficar descansados. Estou disposta para isso”. Esse foi o desabafo da ex-catadora de lixo, Cleonice Ferreira, de 67 anos, minutos após a oficial de Justiça entregar a notificação de que ela tem até a próxima terça-feira (23) para desocupar a casa que ela mora há um ano com o esposo, filho e seis netos. Uma oficial de Justiça notificou na manhã desta sexta-feira (19), cumprindo determinação judicial de reintegração de posse ao Governo do Estado, as 65 famílias que ocuparam as casas inacabadas no conjunto Praia-mar, na zona Oeste de Natal.
Cleonice Ferreira relembra os momentos difíceis em que criou os filhos no antigo lixão de Cidade Nova. “Criei meus filhos no forno do lixo. Eu tinha um barraco e quando chovia eu ficava com eles lá dentro da lama. Foi muito difícil e não quero criar meus netos assim, por isso que vim para cá atrás de quatro telhas, que para eles não é nada, é um lixo, mas para mim é tudo, é um sonho. O sonho da minha vida era ter uma casa para colocar meus netos e agora estão destruindo meu sonho. Não temos para onde ir, vou ter que voltar para um barraco?”, indaga a moradora. A ex-catadora de lixo conta que nos últimos dias não tem conseguido dormir devido ao clima de insegurança. Ela mora na casa com mais oito pessoas: o esposo, o filho e mais seis netos, menores de idade.
A oficial de Justiça, Genilda Santos, fez a notificação das famílias escoltada por policiais militares. Cerca de 20 policiais foram deslocados até o conjunto para garantir a segurança durante o processo de notificação. Genilda conta que não houve resistência dos moradores em receber a notificação e que a maioria estava compreensiva e a informaram apenas que iriam recorrer da decisão, pois já haviam constituído advogado para isso. “Este é o último aviso para que eles tenham até a próxima terça-feira para saírem de forma voluntária e sem necessidade de força policial, como determinou a Justiça. Não houve resistência e acreditamos que eles saiam sem maiores problemas”, destacou. A decisão foi proferida no dia 25 de junho, mas somente hoje, quase um mês depois, é que as famílias foram notificadas.
Ediane da Silva mora com três filhas, uma de três anos e duas de doze anos, e permanece firme de que não sairá de sua residência. “Acredito que o Governo do Estado está agindo de má fé, pois vai jogar 90 crianças para fora de casa e 230 pessoas na rua. Sinto muito, mas não vou sair. Vou resistir porque não tenho para onde ir. Se eu tivesse um emprego eu já tinha saído daqui, mas eu vivo da feira e o que eu ganho só dá para a alimentação. Vou permanecer e vou dar o meu couro para apanhar, pois é necessidade”, desabafou.
A feirante teme que seja obrigada a sair da casa e o Governo do Estado não assuma o compromisso de retomada das obras e outras pessoas invadam as casas. “Se sairmos e outras pessoas entrarem, vamos perder um ano de guerra e luta e tememos que isso volte a acontecer. Acredito que todo mundo que está aqui é porque precisa, ninguém está aqui por rebeldia ou querendo tomar o lugar de alguém.  Neste tempo em que estamos aqui não apareceu ninguém reivindicando o direito da casa e a gente como invasor corre atrás do prejuízo, pois encontramos as casas acabadas e destruídos e reerguemos. Não invadi aqui por má fé não, foi por desespero, por não ter para onde ir. Só espero um pouco de compreensão do Governo, pois se ele não pode dar uma casa para 65 pessoas, então saia porque não tem condições de ajudar o Estado”, destacou.
Kaline Meire, 34 anos, também mora com três filhos (de um, dois e três anos) em uma das casas ocupadas. Ela veio de Pernambuco há um ano, já que não tinha onde morar depois que o esposo foi preso. Em Natal, ela conta que a irmã, que mora próximo à comunidade, pegou a casa onde ela mora hoje, já que todos estavam invadindo. Kaline relembra a situação de abandono em que encontrou a casa. “A casa não tinha nada. Sem teto, sem caixa d’água, sem porta e sem janela, pois depois da primeira invasão os vagabundos levaram tudo. Agora querem jogar na rua um monte de crianças e idosos. Isso é uma humilhação, pois não conseguimos dormir com medo de a polícia nos colocar na rua”, afirmou. Ela conta que como não tem para onde ir e deve resistir à ação de reintegração de posse.
Rosineide de Lima Marques, 41 anos, ocupou há um ano a casa de número 22 na rua Peixe Agulha, no conjunto Praia-mar. Ela morava em uma casa alugada em Felipe Camarão, mas depois que o marido não pode mais trabalhar em função de um acidente, o casal não conseguiu arcar com o aluguel de R$ 250 por mês. Nessa época a invasão das casas começou, e ela, diante da necessidade, não pensou duas vezes: invadiu a casa com o marido e mais os nove filhos. Hoje, ela vive apenas com os R$ 100 oriundos do Programa Bolsa Família, para comprar material escolar, roupa, calçado e alimentação para os filhos, e quando o marido consegue fazer um “bico” eles fazem uma feira que não ultrapassa os R$ 100 por mês.
“Errei em ter entrado aqui, mas fiz isso por desespero, pois estava prestes a ser despejada da minha antiga casa. Sai da casa devendo cinco meses de aluguel e a dona da casa queria me jogar na rua com meus filhos. Eu vi todo mundo se apossando e entrei. É uma injustiça, pois se eles queriam tirar a gente, porque não fizeram logo depois da invasão e não um ano depois, quando gastamos o que não tínhamos para investir na nossa casa”, desabafou a moradora.
Ela disse que apesar das dificuldades, já está procurando uma casa para alugar, embora os valores sejam acima da possibilidade de pagamento. “Eu acho casa, mas o valor é muito alto e não tenho condições. Como é que eu vou pagar o aluguel e comprar alimentação para os meus filhos? Eu posso juntar o Bolsa Família e o dinheiro dos bicos do meu filho e pagar um teto, mas a comida deles quem vai me dar?”, indagou a moradora.
A situação de Maria Valmira, 35 anos, e Júlio Romão de Oliveira, é mais complicada ainda. Eles não invadiram nenhuma casa, apenas o terreno. Eles construíram suas casas com recursos próprios, a custo de muita dificuldade. Júlio Romão, que mora com a esposa e dois filhos, disse que vai resistir e não sairá da residência. “Construímos isso aqui tirando da barriga e com muito esforço para melhorar a vida dos nossos filhos. Convido o juiz que assinou a sentença para conhecer a realidade desse povo. Eles querem que eu desocupe uma casa que eu construi para a minha família morar. Eu não vou sair e vou defender os meus direitos acima de tudo. Não peguei casa que o Governo gastou dinheiro e nem eles vão pegar casa que eu gastei. Nossas casas foram construídas por esforços próprios e não públicos”. Maria Valmira, que morava na antiga Favela Mor Gouveia, conta que não sabe o que fazer, pois não tem para onde ir com os dois filhos. “É muito triste, pois construímos isso com a ajuda dos amigos, familiares e agora querem destruir nosso sonho”.

MLB reconhece que ocupação é irregular
Wellington Bernardo, coordenador do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), conta que há cerca de nove meses acompanha o processo envolvendo as 65 famílias que ocuparam as casas inacabadas do Projeto PAC Favela. Neste sentido, o MLB apresentou algumas propostas ao Governo do Estado, em abril, para resolver o problema e discutir a melhor forma de saída dessas famílias, dentre elas, a retomada imediata das obras.
O MLB pretende que, após a confirmação da retomada da obra, as famílias se comprometam em deixarem as casas de forma pacífica e ordeira. “Já esperávamos chegar esse momento, pois a nossa compreensão enquanto movimento é que a invasão da forma como foi feito foi irregular, pois existiam outras famílias cadastradas. Algumas famílias estão pensando em ocupar outra área, outras em ir para a casa de parentes e algumas pensam em voltar para o aluguel, pois alguns se organizaram para esse momento. Mas, foi feito um cadastro com todas as famílias e uma parte delas, inclusive, vai voltar e outra parte vai entrar no cadastro, esperando outro momento para ter a sua moradia digna. Entendemos como necessária a saída dessas pessoas, porque defendemos a retomada das obras”, destacou Wellington Bernardo.
Além disso, o Movimento também quer que seja apresentado o levantamento da lista dos antigos beneficiários feitos pela Companhia Estadual de Habitação e Desenvolvimento Urbano (Cehab), e se houver sobras, essas serão destinadas as famílias ocupantes, bem como que as casas que tiverem feitas melhorias após uma avaliação da engenharia da Companhia e da Caixa Econômica, que se faça a reposição financeira. O MLB requer a garantia de um aluguel social para todas as famílias no sentido de garantir um local até essas famílias serem realocadas.
Wellington Bernardo conta que diferente do que aconteceu ano passado quando as pessoas saíram e outras pessoas invadiram as casas, haja vista que o Governo do Estado não iniciou as obras, desta vez a empresa responsável pela obra junto com o Governo se comprometeu em começar a cercar a área e montar o canteiro de obras a partir da próxima segunda-feira (22). “A informação que temos é que já está feito o novo cronograma de obras, pois a retomada das obras é fundamental, já que se essas famílias saírem e o Governo não assumir o local, mais uma vez as casas serão invadidas. Essa foi uma garantia que o Governo nos deu e ficaremos mais vigilantes”, destacou.
“Essa situação faz parte de um grande déficit habitacional que há no Rio Grande do Norte, onde há mais de 45 mil famílias sem moradia. O que falta é uma política habitacional, pois enquanto há 45 mil famílias esperando por uma casa, só temos 1,1 mil casas sendo construídas. Não existe uma política de valorização para combater o déficit”, avaliou o representante do Movimento.
do HJ

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