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"O rio é um milagre". José Maurício de Sousa tem 85 anos e não entende nada de pesquisas acadêmicas ou de ciência. Mas sabe tudo sobre rio. O rio Potengi, o maior e mais importante do Rio Grande do Norte, é um velho conhecido desse agricultor aposentado. A palavra "milagre" define o assombro de Zé Maurício, como ele é conhecido no município de Barcelona, a 86 quilômetros de Natal, diante daquilo que é, para o agricultor, a fonte de toda riqueza e o sustentáculo da vida naquelas paragens: o rio, utilizado para dar de beber aos animais, na roça e nos afazeres domésticos.
adriano abreuGrupo de estudos do programa Território da Cidadania Potengi está em campo fazendo pesquisas para elaboração de diagnóstico
Mesmo sem entender de ciência, Zé Maurício concorda com os acadêmicos. Há anos ele percebe o milagre do Potengi desfeito pouco a pouco. De divino, o rio tem se tornado humano, demasiado humano, com o passar dos dias e o aumento do uso irracional, desmedido, dos recursos que o "milagre" põe à disposição dos moradores dos arredores. O rio da infância e adolescência do agricultor não existe mais. E hoje Zé Maurício é obrigado a conviver com águas mais rasas, mais salgadas e com menos diversidade de plantas e animais. Tudo fruto da degradação.O agricultor de 85 anos é um dos personagens do "Diagóstico da Bacia Hidrográfica do Rio Potengi", realizado pelo programa Território da Cidadania Potengi, a partir de uma equipe multidisciplinar de 48 pessoas, entre geógrafos, biólogos, agrônomos, entre outras especialidades. O objetivo é levantar os usos do rio no chamado médio curso, entre São Tomé e Ielmo Marinho, além das relações das comunidades ribeirinhas com o Potengi. Segundo o coordenador técnico de campo do projeto, Johan Adones, não há estudos sobre essa parte do curso de água. A Academia tem se concentrado no estuário, nas cercanias da capital.
Agora, é hora de falar com pessoas como Zé Maurício para entender as transformações pelas quais o rio tem passado. E uma das falas do agricultor dá uma pista importante sobre o que tem acontecido. "O rio está mais salgado porque esses riachos que caem nele ficaram salgados", explica, ao ser perguntado sobre o gosto da água, que vem mudando. Johan Adones usa o vocabulário científico. "Os afluentes do rio Potengi passam pelas cidades e trazem consigo boa parte da poluição que coletam nesses centros urbanos", diz.
Até o início do atual estudo tinham sido catalogados, de acordo com Johan Adonis, quatro principais afluentes no rio. Contudo, percebe-se uma grande disparidade quando se percorre a extensão do Potengi. "Não temos o número fechado, mas encontramos uma quantidade muito superior a essa. Como não há estudos sobre essa área, esses afluentes não estavam no mapa", justifica. Esses afluentes, riachos em sua maioria, são responsáveis em grande parte pela contaminação do rio. Nada que se compare à quantidade encontrada no estuário do rio, nas proximidades de Natal, onde a maior quantidade de pessoas e indústrias resultam em altos níveis de poluição. Mas a marca do uso inadequado também está no médio curso.
Uma característica bastante citada pelos sertanejos é o "enlarguecimento" do rio. Jovens ou idosos, a percepção de que o rio está mais largo, e por consequência também mais raso, é disseminada entre todos os agricultores das cercanias. Mesmo apontando com exatidão a consequência mais visível do processo de "assoreamento" - águas largas e rasas - são poucos os que identificam o causador, ou seja, o desmatamento nas margens do rio. Trata-se de um processo comum, bastante presente na maioria dos rios brasileiros. "Discute-se hoje, no novo código florestal, o limite entre a mar-gem do rio e a área passível de ex-ploração, mas não adianta nada discutir isso se o limite não é aplicado. Hoje não há aplicação da lei", diz Johan.
Como as margens são mais férteis, os donos de terras e agricultores preferem plantar por ali, muitas vezes até de forma "inocente", pela simples ato de repetir a tradição. Sem a proteção natural da mata, tudo o que o vento traz, como areia, por exemplo, acaba se depositando no leito do rio, que fica mais raso. Sem a proteção natural da mata, as águas se espalham tornando o curso mais largo. E assim, aos poucos, o "milagre" vai sendo desfeito.
Comunidades
As muitas entrevistas com as comunidades ribeirinhas no médio curso do rio Potengi mostram um perfil semelhante. No geral, os agricultores e pescadores daquela região identificam o rio Potengi de forma semelhante a José Maurício de Sousa: como um "milagre", ou seja como o elemento através do qual a prosperidade da vida naquela região se torna possível. Da mesma forma, os usos do rio, adequados ou inadequados, se repetem nas palavras dos ribeirinhos.
O lixo é principalmente queimado ou enterrado por ali. Poucos são os casos de coleta. A equipe flagrou, contudo, a existência de "lixões", o que demonstra que mesmo com a coleta, o processo não está livre de problemas ambientais. Além disso, o esgoto é eminentemente destinado para fossas sépticas. A água utilizada vem de adutoras, ou então é recolhida em cisternas. Na maioria dos casos, somente os animais bebem diretamente do rio. A água dos afazeres domésticos também é do Potengi.
Os moradores vivem com rendas de até um salário mínimo e plantam feijão, milho e capim principalmente. Eles percebem, no geral, problemas nos usos que fazem do rio, embora nem sempre identifiquem as mudanças pelas quais as águas vem passando como fruto da atividade humana.
Grupo constata poluição e assoreamento no curso do rio
Poluição nos afluentes e assoreamento do leito do rio são apenas algumas das situações com as quais o grupo do projeto "Diagóstico da Bacia Hidrográfica do Rio Potengi" se depara durante o trabalho de campo. Como não há estudos sobre a área atualmente investigada, a equipe tem percorrido a pé todo o curso do rio. No trecho em questão, o rio não é perene, dependendo das chuvas para ficar cheio. É justamente nesse período quando não há chuva suficiente que o trabalho realizado. Com o rio seco, os pesquisadores andam no leito, entre pedras, fios de água e areia fofa. A paisagem em muitos momentos chama a atenção pela beleza. A idéia é terminar a parte de campo em fins de julho, dependendo do volume de chuvas e do estado do Potengi.
A reportagem da TRIBUNA DO NORTE se juntou ao grupo coordenado por Johan Adonis em um domingo (19/06) para acompanhar parte do trajeto no município de Barcelona. O grupo, além de vários especialistas, contava também com um guia, conhecedor dos caminhos por dentro do rio, e também dos afluentes daquela região. O marco inicial foi a divisa entre São Tomé e Barcelona. Além de entrevistar os moradores da "beira" do rio, a equipe também georreferenciou pontos importantes, como afluentes, poços e árvores representantivas da região.
Como se trata de um trabalho de identificação e reconhecimento, conseguir posicionar, através de um GPS, onde estão os afluentes, poços, barragens, quais áreas de degradação, etc, é fundamental. "Esse trabalho servirá para identificar potenciais turísticos, por exemplo, ou pontos onde já é necessário um trabalho de recuperação. Então, é um ponto de partida para definir uma política de tratamento em torno do rio", explica Johan. A identificação de árvores representantivas - seja pela antiguidade ou por se tratar de uma espécie em extinção - é um outro ponto importante. "Vai permitir o monitoramento, daqui a algum tempo saber se essas árvores continuam assim", resume.
O trabalho de campo é comple-mentado com visitas nos pontos de degradação nas cidades e entrevistas com membros do poder público. Lixões, abatedouros, locais de despejo de material de fossa. Tudo isso já foi encontrado pelas equipes nas cidades que circundam o médio curso do rio Potengi. Um dos principais calos na parte relativa aos centros urbanos é o despejo de esgoto sem nenhum tratamento nas águas do rio, o que também ainda acontece em Natal e cidades vizinhas, embora em percentuais menores. O esgoto é despejado em algum riacho que é afluente do rio, o que causa um dano semelhante. "Esses afluentes trazem boa parte da poluição encontrada no rio", resume.
Em um dos pontos da caminhada, o grupo conseguiu flagrar um dos motivos do assoreamento, para além da retirada das matas ciliares: o comércio de areia. Um caminhão e uma escavadeira retiravam areia do leito seco para o que os operários alegaram ser uma obra em um município vizinho. Não havia sombra de fiscalização no local. "É algo que acontece bastante, a retirada de material do leito do rio. Será uma das questões relatadas no trabalho", expõe Johan.
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