O mundo da tatuagem em dez horas


Tatuagem de negra africana feita por Ruy Pinheiro em sua irmã, Carolina, durou 6 horas e meia. Foto: Conrado Carlos
Tatuagem de negra africana feita por Ruy Pinheiro em sua irmã, Carolina, durou 6 horas e meia. Foto: Conrado Carlos
Um cartaz afixado em vários muros da cidade chamou a atenção, nos últimos dias, pelo tema e a imagem ilustrativa: a 7ª Natal Tattoo Expo anunciava a presença de Melissa Szeto, uma colombiana de Medellín que mora em Londres há três anos. O evento foi programado para o último final de semana, no Praiamar Hotel, em Ponta Negra. Curioso pelas novidades da arte corpórea descoberta pelo capitão James Cook (assim como o surf) entre aborígenes polinésios, O Jornal de Hoje passou dez horas entre adeptos e simpatizantes da forma como o governo inglês, então ‘proprietário’ da Austrália e da Nova Zelândia, identificava presidiários – as duas prósperas nações funcionaram como depósitos de presos britânicos durante os séculos 18 e 19.
Ao meio dia de domingo (10), tatuadores preparavam o material e viam os primeiros visitantes chegarem. Com 32 stands, adquiridos por valores que oscilaram entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil, a Natal Tattoo Expo é a segunda convenção mais antiga do país. “Onde os esquisitos têm vez”, diria um conservador. Logo na calçada do hotel, personagens chamativos para um nordestino padrão sugeriam que existe uma cidade alternativa, à margem, mas criativa e pulsante a ponto de atrair, segundo a organização, duas mil pessoas, em dois dias. Com profissionais de sete estados brasileiros, mais a convidada especial, o evento era aguardado com expectativa pelos mais de 50 proprietários de estúdios locais.
A estrutura seguiu o modelo utilizado em convenções europeias, fruto da experiência conquistada pelo pernambucano João Lemos. Desde 2010 morando em Londres, ele, que foi grafiteiro e tatuador em Natal, é conhecido como Marrom, o cara responsável por reunir artistas variados. “A cidade mudou. Hoje, as pessoas, sejam de qualquer tribo, gostam de tatuagem. Basta ver a quantidade de pessoas com trabalhos bem feitos no corpo. O nível dos profissionais locais está muito bom. Por isso, estou feliz com a convenção. Ela está do jeito que eu queria: pequena, mas com muita qualidade”. Lotado na capital inglesa, ele tatuou o craque da Seleção Brasileira e do Chelsea, Ramires, e recebeu a visita de Ana Hickmann e Dani Bolina em seu estúdio.
Ao propor 14 categorias na competição realizada no final de cada dia, Marrom nem suspeitava que 160 trabalhos, todos iniciados e concluídos na convenção, seriam inscritos. Atuante em um mercado que chega a cobrar até 1000 libras por hora, o crescimento observado em solo potiguar desperta alguma preocupação. “Tatuagem está na moda. Vejo como uma das profissões mais promissoras, mas também me preocupo com a quantidade de workshops, onde o cara ensina a arte dele por R$ 500 para qualquer um que esteja disposto a pagar”. Sem reconhecimento como categoria profissional, tatuadores têm o material regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Aqui na convenção valorizamos a higiene, com lixeiras próprias para lixo hospitalar, proibição de alimentos nos estúdios, com tudo reciclável”.
À medida que o fluxo de pessoas aumentava, alguns tatuadores tornavam-se os mais concorridos de forma natural. É o caso de Melissa Szeto. Acompanhada do também colombiano Jairo Carmona, ela veio ao Brasil pela primeira vez. Integrante do estúdio 13 Diamonds Tattoos, no centro de Londres, se derrete pelo pouco que conheceu da cultura potiguar e do que saltava das caixas amplificadoras. “Achei a comida e a música muito boa. Apesar do idioma, temos certa semelhança [entre Brasil e Colômbia]. Estou muito feliz de ter sido convidada para esta convenção que está com um ótimo nível”. O cabelo azul e roxo, complementado por braços cobertos com desenhos impressos na pele, motivou um número considerável de pessoas a tirar fotografias a seu lado.
Ainda que o espanhol falado na Colômbia seja considerado o de melhor pronúncia e pureza entre os sul-americanos, a ajuda de alguém fluente no idioma de Gabriel Garcia Marquez facilita a troca de informação entre Melissa e a reportagem, em meio ao reggae lançado pelo potente sistema de som. O papel coube ao paulistano radicado em Palma de Majorca, Espanha, Jei Mantovani. Tatuado na cabeça, no pescoço e no rosto, ele vive na Europa há 12 anos. A crise que assola o Velho Continente mudou o perfil das tatuagens pedidas por espanhóis, mesmo que nórdicos e britânicos sejam seu público alvo. “Tatuagem é luxo. Então, mesmo em crise, as pessoas não deixam de fazer. O que aconteceu foi a diminuição do tamanho pedido, para ficar mais barato”.
Jei elogia a Natal Tattoo Expo. “Está bem completa e tem tudo para o conforto dos artistas. Estamos bem à vontade”. Ambiente climatizado, seguro, com quiosques abastecidos de lanches (água e cafezinho gratuitos) e souvenires.  Atrativos conferidos por frequentadores que enchiam o local, conforme seguia a tarde, e circulavam por stands com tatuagens em processo adiantado. Uma figura, no entanto, atraia mais olhares do que qualquer imagem presente. Era o popular J. Punk, ícone papa jerimum do movimento radical que traduziu na estética a revolta dos jovens nos anos 1970, e que ainda reverbera nos quatro cantos do mundo. O pequeno natalense tem 87% do corpo preenchido, além de 15 piercings que rasgam sua pele em pontos como a boca e o nariz.
“É um estilo de vida. Já me acostumei com isso, das pessoas me olharem assustadas. O que me incomoda são as críticas irracionais, como associar tatuagem a marginalidade”, diz o sujeito pacífico que omite o nome verdadeiro, como que para registrar a marca como é conhecido. J. Punk fez sua primeira tatuagem (um guerreiro viking) aos 14 anos e chegou a ter mais de 50 alfinetes na epiderme. “Quando comecei a usar, era alfinete mesmo. Eu sou adepto do body modification [mania que introduz objetos no organismo para mudar contornos naturais]“. Pai de um menino com 12 anos, casado por duas temporadas, o homem que tem dois olhos adicionais (um na testa, outro no pescoço) é sumário ao falar da relação com a mãe do filho. “Não deu certo”.
Certo mesmo foi o encontro de dona Josefa Rodrigues Silva com o mundo da tatuagem. A ex-gerente de restaurante viu o filho Diego proclamar que queria ser tatuador, anos atrás. “Não queria isso para ele. Mas ele construiu a maquininha e bateu pé sobre o que queria fazer da vida. Então eu fui estudar sobre o assunto e quando vi que era o que ele queria mesmo, abracei a causa. Quem ia dar a pele para um iniciante? A mãe, né?”. Cinco anos depois, ‘Mainha’, como é chamada no meio, tem boa parte da pele coberta pelo trabalho da cria com flores e mangás (desenhos japoneses) e assumiu o controle administrativo do estúdio familiar. “Virou nossa sobrevivência. Hoje temos uma boa condição financeira graças àquela loucura. Se eu fosse 20 anos mais nova, fecharia o corpo inteiro. Arte não tem idade”.
Como desfecho da 7ª Natal Tattoo Expo, a reportagem propôs acompanhar a feitura de uma tatuagem do contorno feito em carbono, até a última pincelada no braço. O desenho de uma negra africana, feito por Ruy Pinheiro em sua irmã, a projetista de móveis, Carolina Pinheiro, surgiu, após seis horas e meia de agulhadas, como uma aparição instantânea de uma imagem bem acabada. Para quem pensa em fazer, mas esbarra no medo da dor ou nos valores de uma sociedade em desenvolvimento, ela terminou a sessão com um sorriso no rosto. “É minha oitava tatuagem. Mais que uma simples rebeldia, vejo como pura arte. E ainda tenho a sorte de ter um ótimo tatuador na família. Cada mulher tem seu jeito de se sentir bonita. Eu fico com as minhas tattoos”.

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