Em defesa da justiça
A análise de embargos infringentes não corresponde a um novo julgamento, mas à segunda etapa do mesmo, na qual juízes superam dúvidas
O julgamento da ação penal 470 tem mobilizado paixões e ódios, potencializados pela cobertura intensa da mídia. Nesse ambiente, visões distorcidas ganham ares de verdade, a depender da posição política do observador.
É resultado dessa miopia a avaliação de que a apresentação dos chamados embargos infringentes pela defesa dos réus representa uma tentativa de golpe.
Tal impropriedade foi defendida nesta Folha por Marco Antonio Villa, no artigo "Em defesa de Joaquim Barbosa" (28/8), pontuado mais por convicções políticas do que por conhecimento jurídico ou equilíbrio de análise. Ele reproduz a afirmação de que a eventual aceitação dos embargos infringentes pelo Supremo Tribunal Federal representaria uma reabertura do julgamento.
Muitos analistas pouco afeitos às regras processuais têm repetido que a análise desses embargos equivaleria a um novo julgamento.
É preciso deixar claro: a análise de embargos infringentes não corresponde a um novo julgamento, mas à segunda etapa do mesmo julgamento. Esses embargos estão previstos no regimento do STF apenas para os pontos em que, na primeira etapa do julgamento, houve divergência razoável entre os juízes. São aquelas decisões em que ao menos 4 dos 11 ministros votaram contra a tese que acabou prevalecendo.
E por que o regimento do STF prevê esse dispositivo? Porque uma decisão tomada com grau tão grande de divergência está marcada pela dúvida. A regra que permite os embargos infringentes serve para que os juízes rediscutam suas decisões mais difíceis e superem suas dúvidas, na busca da sentença mais justa.
No caso da ação penal 470, a análise das divergências registradas na primeira fase do julgamento torna-se ainda mais necessária. Mesmo os réus que não se encaixavam nos requisitos do foro especial foram submetidos a julgamento de uma única instância, vendo suas causas levadas diretamente ao STF, sem passagem pelo juízo de primeiro grau, como ocorre usualmente em ações dessa natureza.
Exatamente por isso é ainda mais recomendável eliminar qualquer sombra de dúvida deixada pela primeira fase do julgamento.
O Direito, lembremos, não é uma ciência exata. A interpretação e a aplicação das leis sempre depende de um certo grau de subjetividade. Em decisões colegiadas, como as do STF, é no debate entre os juízes e no exame detido de suas divergências que se chega mais perto da justiça.
Nesse sentido, aliás, classificar como chicana a simples apresentação de divergência por um dos ministros é revelador. Representa falta de disposição para examinar com espírito desarmado argumentos capazes de melhorar a decisão judicial. Mesmo que, ao final, não se concorde com eles, olhá-los com a devida atenção só aperfeiçoa a sentença.
Juízes, como quaisquer seres humanos, são falíveis, e faz bem ter consciência disso. A justiça que tarda não é justiça. Assim como não é justiça a justiça que atropela etapas e limita o debate de argumentos.
Registre-se que, para os padrões brasileiros, a ação penal 470 teve andamento célere. Entre a abertura do inquérito e o julgamento final, passaram-se oito anos. Em nosso país, são incontáveis os processos de casos rumorosos que duram mais.
Pode-se considerar a lentidão um dos males do sistema judiciário brasileiro. A solução desse problema, porém, depende de reformas estruturais, e não da ação individual de juízes, cujo voluntarismo pode nos empurrar para as raias da injustiça.
Pode-se não gostar dos réus da ação penal 470 e até torcer por sua condenação. O que não se admite é a desatenção com os princípios jurídicos estabelecidos --isso representa uma ameaça não só à busca pela justiça, mas também à democracia.
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