Que o país enfrenta a pior crise política em 30 anos é uma constatação até óbvia.
A novidade das últimas semanas é que ela deixou de ser uma crise do governo, como tantas que o país já enfrentou, para chegar às fronteiras de uma crise de Estado, muito mais grave, de solução delicada e difícil.
O Brasil de hoje se encontra numa situação em que separação entre poderes, cláusula pétrea das constituições democráticas, se encontra em risco. Ninguém fala por ninguém. A máquina pública não sabe a quem obedecer em meio a uma disputa de facções que assume a feição de uma guerra entre franco-atiradores. Não são guerrilheiros, nem invasores estrangeiros, nem mesmo delinquentes comuns. Muitos menos se pode falar em clãs de natureza política, desses que existem em todo governo, que servem para definir alinhamentos políticos, mais à direita, mais à esquerda, como acontece em qualquer governo.
Estamos falando de autoridades públicas que se revezam e se enfrentam em movimentos selvagens, em busca de objetivos particulares, num confronto caótico típico de um quadro de desagregação e falta de rumo.
O fato da Polícia Federal ter invadido o Congresso, o que não ocorreu sequer sob a ditadura militar, para prender policiais legislativos, acusados de fazer uma varredura em residência de quatro senadores, autoridades eleitas, já seria em si um episódio gravíssimo, acima de toda formalidade jurídica que possa lhe servir de cobertura. Mas não é um caso isolado. Também ocorrem disputas que ao longo da história humana se resolviam à bala, mas que hoje se travam através da mídia, que poupa vidas mas elimina reputações na mesma velocidade.
O caso mais recente -- e civilizado -- tem sido protagonizado por Gilmar Mendes e Sérgio Moro. O ministro do STF e o juiz da Lava jato entraram no país pós-impeachment como líderes e herdeiros da nova situação política, cada qual em sua esfera e área de intervenção, influentes num Judiciário cada vez mais musculoso e atuante. Nem se passaram dois meses, contudo, para se verificar que romperam a postura de não agressão para promover um confronto público, ainda que a legislação brasileira diga que juízes, em qualquer instância, devam limitar-se a fazer pronunciamentos através dos autos.
Num sinal -- as pesquisas sempre servem para alguma coisa -- de que a popularidade sem manchas de outrora começa a enfrentar questionamentos e arranhões, Moro tem aproveitado cada oportunidade, cada ato público, para mostrar que não irá recuar um milímetro no esforço de "deslegitimar" a classe política, mesmo que o preço seja seguir no desmonte da economia de um país já em depressão aguda, como forma de perseguir a corrupção.
Depois de mandar prender Eduardo Cunha, o que pode ser interpretado como uma resposta às críticas já frequentes de parcialidade na Lava Jato, o alvo atual de Moro é combater uma lei contra abusos de autoridade que, sem nenhuma medida particularmente drástica, pode impor limites a um ambiente jurídico que lembra o velho esporte de tiro ao pombo.
Um dos inspiradores da mesma lei, Gilmar Mendes é forçado a levantar a voz num momento em que tanto o Japonês como o Lenhador se aproximam do PMDB e especialmente dos caciques do PSDB paulista, responsáveis por sua promoção e abrigo desde os anos Fernando Henrique Cardoso. Gilmar hoje se bate pelos direitos e garantias individuais, uma causa correta, mas que poderia ter sido assumida com antecedência.
Solidário com Moro, o procurador Carlos Fernando Lima, com uma influência política reconhecida na força-tarefa, ameaça abandonar os trabalhos na Lava Jato caso a lei que Gilmar defende venha a ser aprovada.
O motivo aparente desse confronto encontra-se na corrosão acelerada do governo Michel Temer, de sobrevivência duvidosa, ainda mais depois da prisão de Eduardo Cunha ("Michel é Cunha", disse Romero Jucá).
Com a saída de Dilma Rousseff, num ambiente de questionamentos, denúncias e trapaças, o Estado brasileiro ficou sem uma autoridade legítima para conduzir o país até 2018. Numa democracia, a legitimidade produz ordem e define hierarquias. Todos aceitam porque envolve referências comuns. Em sua ausência, cria-se o salve-se quem puder.
Este é o buraco negro, que tudo atrai, onde tudo desaparece. O país assiste a uma guerra -- talvez de vida ou morte -- entre personagens falantes que mantém fatias do Estado sob seu controle. Possuem aliados na mídia e até podem mobilizar cidadãos indignados. Não possuem, porém, o essencial para um país atravessar uma crise -- a confirmação pelo voto popular. Não há uma base política, capaz de dar sentido a um condomínio montado para dar as costas ao país, derrubar uma presidente eleita e entregar o destino a seus patrocinadores, locais e/ou externos.
Não se trata de lamentar a saída de Dilma nem de execrar sua memória mas reconhecer um dado inegável: a situação de crise tornou-se muito pior em sua ausência. Até porque não se trata de um processo individual, mas o desmonte de uma força política majoritária nas quatro eleições presidenciais anteriores.
A fraqueza congênita de Temer limita seus passos no Executivo e deixa seu governo exposto a dificuldades permanentes de sobrevivência.
O espetáculo das vitórias no Congresso é precário e de curta duração. Não encontra a menor ressonância junto a população, que não quer ouvir falar de reforma da Previdência e já começa a encontrar o caminho da resistência a PEC 241 antes mesmo dela começar a mostrar seus frutos na vida cotidiana, quando ficará claro que aquilo que hoje está ruim vai ficar ainda pior.
O destino incerto de Temer se manifesta, ainda, no debate --forçado pelos interesses políticos envolvidos, mas surrealista como matéria jurídica -- sobre a preservação de seu mandato de vice caso a titular Dilma companheira de chapa, seja condenada por crime eleitoral, medida que pode servir para que seja cassada e excluída fora da vida pública.
Apenas dois meses depois que Temer recebeu o Planalto por uma razão única e exclusiva -- era o número 2 na chapa -- o ministro Luiz Fux admite uma cirurgia de separação de corpos que é difícil deixar de classificar como escândalo e casuísmo.
Combinado com a devastação da Lava Jato, o afastamento de Cunha privou Temer do principal aliado na Câmara, desmontando uma articulação política que, cabe reconhecer, em outras circunstâncias poderia gerar tumultos muito menores do que no período Dilma.
Ao acreditar que poderia assegurar a sobrevivência na ruptura com a então presidente, o presidente do Senado Renan Calheiros perdeu o pé. Vê-se diante da necessidade de se mexer -- num combate solitário -- para defender-se de forças cada vez mais hostis.
O Supremo também se apequenou, na razão direta do papel menor que optou por assumir diante de uma decisão que envolvia a grandeza da soberania popular como principal substância de nossa Republica, o que limita sua capacidade de intervenção política.
do 247
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