Maior presídio do RN tem práticas de tortura, diz relatório

Relatório considera que o 'procedimento' que obrigada os presos a ficarem em posição semifetal causa estresse — Foto: Anderson Barbosa/G1
Mecanismo e Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura dizem que Alcaçuz tem ‘seríssimas semelhanças’ com Abu Ghraib, no Iraque.

Alcaçuz, a maior penitenciária do Rio Grande Norte, está sendo comparada a Abu Ghraib, o presídio iraquiano que foi centro de tortura durante o regime de Saddam Hussein e escândalo mundial após a divulgação de imagens de presos sendo humilhados e torturados por soldados americanos em 2004.

Segundo o ‘Relatório de Monitoramento de Recomendações: Massacres Prisionais dos Estados do Amazonas, do Rio Grande do Norte e de Roraima’, que será apresentado à imprensa nesta quarta-feira (28), em Brasília, presos potiguares estão sendo vítimas de violência física e psicológica com “seríssimas semelhanças” às sofridas pelos detentos iraquianos.

O documento foi elaborado por uma missão composta por membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Ambos são órgãos da União que atuam de forma independente, mas que funcionam em conjunto com o Ministério dos Direitos Humanos.

O texto traz relatos de casos de humilhação coletiva, desnudamentos, maus-tratos e constrangimentos de mulheres grávidas e crianças parentes de presos. Também há denúncias de de agressões extremas, como espancamentos, dedos fraturados e até desmaios causados por enforcamento com cassetete.

Tais violências atacam a dignidade humana, ainda de acordo com o relatório, e vêm ocorrendo há quase dois anos, depois que agentes penitenciários de uma força-tarefa nacional e do próprio estado retomaram o controle da unidade. O ‘Massacre de Alcaçuz’, como ficou denominada a matança de 26 detentos em janeiro de 2017, é o episódio mais sangrento da história do sistema carcerário potiguar.

O G1 teve acesso às quase 200 páginas do documento, que é fruto de visitas feitas no início deste ano aos três presídios que foram palco de massacres ocorridos em janeiro de 2017 no país. Além dos 26 que tombaram em Alcaçuz, na Grande Natal, 33 presos foram mortos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista, e outros 60 no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus.

Além de trazer à tona denúncias de abusos e casos de maus-tratos, o relatório ainda cobra do poder público soluções para a superlotação em Alcaçuz e informações sobre detentos, que após quase dois anos da carnificina, ainda são considerados ‘desaparecidos’. A Sejuc diz que 16 presos, não localizados na recontagem, simplesmente fugiram. Já o Mecanismo e o Comitê, trabalham com uma lista de 32 internos sem paradeiro.

“O Mecanismo e o Comitê ponderam sobre as informações contraditórias e incompletas dos órgãos de Estado quanto às pessoas presas e apontam que a classificação de ‘foragido’ para 17 presos não é consistente, além dos 15 que a administração penitenciária e o Sistema de Justiça não prestaram nenhuma informação", frisa a perita Ana Cláudia Camuri.

"Considerando o conjunto de fatores envolvidos nesses casos, entre eles a não realização de perícia adequada, pode-se averiguar indícios de desaparecimento forçado, prática identificada na ditadura brasileira e definida na Convenção Internacional que o Brasil firmou em 2007", acrescentou.
No estado, nenhuma família dos internos mortos recebeu qualquer indenização. E, até então, ninguém foi punido ou responsabilizado pela matança – sendo que o inquérito aberto não apura responsabilidade de nenhum agente público.

O relatório também foi produzido com o intuito de dar transparência a uma série de recomendações feitas após os massacres aos poderes executivo, legislativo e judiciário dos três estados. Porém, pouco ou quase nada mudou. No Rio Grande do Norte, por exemplo, de 73 recomendações feitas pelos órgãos antitortura, apenas 1 delas foi cumprida (a realização de concurso público para agentes penitenciários).

Em Roraima, na Penitenciária Agrícola Monte Cristo, pesa a situação de venezuelanos encarcerados em uma situação de intensa insalubridade. Pior: as autoridades locais sequer sabem quantos são os estrangeiros. A estimativa da missão é de que pelo menos 60 migrantes estão entre os 1.150 aprisionados brasileiros em Boa Vista.

Já no Amazonas, apesar da privatização da administração do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, o destaque é para a falta de estrutura. O modelo de gestão é criticado no relatório, que também detectou um ambiente preocupante para os presos. Segundo o relatório, a cadeia não oferece sistema de água potável perene, não possui atendimento de saúde regular, ou mesmo medicamentos, produtos de higiene, alimentação e condições de trabalho para os presos. Além disso, no período da inspeção, não havia horário e local específico para a visita íntima e para a visita das igrejas para assistência religiosa.

Alcaçuz (RN)

Um muro de concreto foi erguido dividindo o complexo penal ao meio. De um lado, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz, com os pavilhões 1, 2 e 3. Do outro, o Presídio Rogério Coutinho Madruga, com os pavilhões 4 e 5   — Foto: Anderson Barbosa/G1
Superlotação e humilhação

Alcaçuz fica em Nísia Floresta, cidade da Grande Natal. Quando aconteceu o massacre, a maior penitenciária do RN tinha pouco mais de 1.100 detentos. Já em janeiro, quando houve a visita, a Secretaria de Justiça e da Cidadania (Sejuc) informou haver 2.220 internos no complexo. Detalhe: antes do massacre, Alcaçuz possuía quatro pavilhões e mais um presídio anexo, o Rogério Coutinho Madruga, então chamado de Pavilhão 5. Porém, no dia da inspeção feita no início deste ano. apenas dois pavilhões de Alcaçuz estavam ocupados e mais o PV5, juntos comportando praticamente o dobro de presos em um espaço bem menor que antes.

O relatório também afirma que as medidas tomadas para manter o controle em Alcaçuz, além do confinamento dos detentos em celas superlotadas, ainda despreza as famílias dos internos.

“Afronta a previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura a convivência da criança mediante visitas periódicas a pai e mãe privados de liberdade”, destaca. “Assim como há relatos de que os familiares são destratados e os presos são humilhados diante dos familiares pelos agentes”, acrescenta.
Presos obedecem à ordem de 'procedimento', e logo colocam as mãos por trás da nuca em posição semifetal — Foto: MNPCT
"Foi identificada uma naturalização de rotinas rígidas, excessivas e antinaturais no Complexo de Alcaçuz, além do uso da força de forma desproporcional e de castigos corporais. A organização e limpeza do ambiente estão calçadas em práticas não sustentáveis de humilhação, subjugação e anulação psicológica dos indivíduos", disse Valdirene Daufemback, coordenadora do Mecanismo.
"Preocupa o Mecanismo e o Comitê que procedimentos como esses estejam sendo considerados como referência e normalizados. Nesse contexto é incentivada uma hostilização dos servidores e presos que prejudica a ambos e à sociedade", ressaltou.

Sofrimento físico

“As sanções aplicadas aos presos que descumprem as regras e comandos são extremamente graves”, diz o relatório, acrescentando que há “relatos consistentes” que apontam que “o uso periódico de sprays de pimenta e agressões com cassetetes ou tonfas”, além de “agressões nos dedos e nas mãos como forma de castigo ou suposta prevenção a reações que pessoas presas possam ter em uma situação de tensão”.
Preso mostra ferimento no dedo. Relatório diz que isso é feito para deixar o detento sem força para empunhar facas contra os agentes — Foto: MNPCT
Em meio ao relatório, é descrita uma fala do secretário estadual de Justiça e da Cidadania, Mauro Albuquerque, durante audiência pública realizada na Câmara Municipal de Natal no dia 12 de setembro de 2017, na qual ele menciona que agentes penitenciários deveriam lesionar dolosamente os dedos de pessoas presas, com o intuito de prevenir eventuais agressões que pudessem vir a ser cometidas contra agentes penitenciários.

Consta no texto: "Quando se bate nos dedos – falo isso que não é porque não deixa marca nos dedos não... porque deixa marca – é para ele não ter mais força para pegar uma faca e empurrar num agente, é para não ter mais força para jogar pedra... Igual teve agente ferido que ninguém fala aqui […]".

Ainda de acordo com o relatório, a Lei de Execução Penal autoriza algumas sanções disciplinares para pessoas presas, como advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos e ainda isolamento na própria cela ou em local adequado. Porém, “de modo algum autoriza punições físicas como forma legal de sanção. Destaca-se que o isolamento deve ser aplicado somente por infrações graves”, ressalta.

Revistas vexatórias

Outra grave constatação, ainda segundo o documento, trata de revistas vexatórias nos familiares, que desrespeitam diretrizes nacionais e internacionais. “Tal revista é feita, inclusive, nas mulheres idosas, nas grávidas e nas crianças de ambos os sexos”, aponta.

A equipe colheu relatos sobre grávidas tendo que fazer agachamento e tendo que retirar suas roupas íntimas, além do uso de espelhos. “Assim como ouvimos narrativas de que as crianças estão tendo que tirar suas roupas, num procedimento coordenado por agentes penitenciárias na presença das mães, sendo que em um dos casos foi descrita a cena de uma criança do sexo masculino tendo que afastar a pele da sua genitália para inspeção, a fim de verificar se contava com a presença de materiais não autorizados no interior do prepúcio da criança, caracterizando-se por procedimento humilhante, vexatório e evidentemente dispensável”, relata.

“Tal fato registrado pela equipe configura violação patente do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Regra 60, Parágrafo 2, das Regras Nelson Mandela”, complementa.

Os membros da equipe que realizaram as visitas disseram que, na ocasião, o diretor do Rogério Coutinho Madruga informou que, em 10 meses na direção da unidade, somente um chip havia sido encontrado nos procedimentos de revista, situação em que não foi necessário o uso da revista vexatória para identificar o objeto. Já o secretário da Sejuc, Mauro Albuquerque, informara que estava em fase licitatória a aquisição de scanners corporais para que as revistas vexatórias deixassem de ser realizadas.

Ao mesmo tempo em que foram feitas as visitas a Alcaçuz, a equipe tentou uma audiência com o governador Robinson Faria, mas não foi atendida.

Duas das recomendações do MNPCT, inclusive, foram direcionadas ao governador no sentido de proposição de um projeto de lei, ou outro instrumento normativo adequado, para abolir a revista vexatória de visitantes em todas as unidades prisionais do Rio Grande do Norte, particularmente proibindo o desnudamento, agachamento, uso de espelhos e contrações musculares. “No entanto, não encontramos registro de nenhum projeto de lei estadual ou ato administrativo propondo abolir tal procedimento”, pontuou.

Extração

Durante a visita, ainda tratando das sanções previstas na LEP, o relatório diz que a que despontou como a mais utilizada foi o isolamento em celas batizadas de “celas disciplinares”. Contudo, a missão esclarece não há permissão legal para este tipo de castigo da forma que está sendo feita. “O isolamento é permitido, mas com uma causa fundamentada e com processo administrativo”, pondera. O que foi relatado, tanto em Alcaçuz quanto na PERCM, é a chamada ‘extração.

A extração consiste na retirada à força de um preso da cela. Isso é feito, segundo o próprio relatório, com o detento algemados com as mãos nas costas. Atrás do preso, fica o agente penitenciário, que o estrangula com um cassetete, suspendendo o preso até que este fique na ponta dos pés. Desta forma, o carcereiro consegue fazer o preso caminhar para qualquer lugar sem que o detento consiga se opor. “Houve relatos de que seria comum que pessoas de baixa estatura chegassem a desmaiar por falta de ar durante esta prática”, afirma a equipe.
Na 'extração', presos são retirados das celas sempre algemados com as mãos nas costas — Foto: Anderson Barbosa/G1
Banho de sol

A falta de banhos de sol regulares também foi um problema apontado. “Quanto ao banho de sol diário, recomendado pelo MNPCT e pelo programa Defensores Sem Fronteiras, segundo a administração carcerária, ele é feito em dias alternados. De acordo com outros relatos, ele é semanal. Observou-se que os presos estavam de um modo geral, pálidos. Este fato deixa dúvidas acerca do banho de sol constante”, relatou a equipe.
Falta de banhos de sol regulares também foi apontado como um problema — Foto: MNPCT
Doenças

A falta de tratamento ou acompanhamento médico para os presos doentes também são problemas encontrados no complexo penal Alcaçuz/Rogério Coutinho Madruga. As equipes dizem ter encontrado 118 detentos com tuberculose, 10 com HIV/AIDS e 62 estavam fazendo uso de psicotrópicos, em sua maioria para ansiedade. Contudo, há relatos de que os remédios, que são fornecidos por familiares, muitos não chegavam às mãos dos doentes.

“Todos os relatos ouvidos corroboraram a informação de que os pacientes com transtorno mental não recebem atendimentos especializado por parte da rede de saúde mental local. Nas unidades prisionais não existe profissional de psiquiatria e quem prescreve a medicação é o clínico geral da equipe de saúde deles. Quando esses pacientes entram em crise, são isolados e/ou levados ao Hospital Público João Machado. No entanto, a recomendação é para que os presos com sofrimento psíquico sejam encaminhados para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do território", relatou a equipe que esteve na penitenciária.

"É importante destacar, ainda, que no dia da visita, foi observada a presença de um preso supostamente em surto, que não estava recebendo o devido atendimento médico e psicológico, tendo sido colocado sozinho numa cela de seguro. Ele estava completamente em silêncio e acuado num canto da cela. Segundo relatos da equipe de segurança, ele era medicado pelo clínico da equipe de saúde da unidade apenas para se acalmar, não recebia atendimento psiquiátrico, nem psicológico algum, sendo levado para o hospital apenas para receber medicação mais forte quando irrompia em surto”, segue o texto.
Preso com crise foi isolado em uma cela. Relatório diz que detentos não têm tratamento adequado — Foto: MNPCT
Sem remição

Dentre as propostas feitas pela missão no contexto da educação dos apenados, estão torná-los aptos para reformar carteiras escolares, confeccionar uniformes, atuar na construção civil como bombeiro hidráulico, eletricista, serralheiro, pedreiro, marceneiro e/ou pintor, além de capacitados para o trabalho de mecânico, eletricista e lanterneiro de autos. Implantação de uma fábrica de bloquetes para pavimentação e padaria também foram ideias. No entanto, não foi constatado que o termo firmado com o Estado esteja em execução.

Pelo contrário. O relatório aponta que o trabalho que foi e que vem sendo realizado na penitenciária é irregular. “A equipe do MNPCT/CNPCT recebeu informações de que existiam presos trabalhando no recolhimento do lixo, na construção de um projeto de paisagismo na parte exterior dos pavilhões e, além disso, são os próprios presos que fazem a limpeza de suas celas com o material levado pelos familiares. Porém, tudo de foram ‘voluntária’, mas sem direito à remição de pena. Configura-se evidente conduta abusiva por parte da administração”, reforça o texto.
Presos trabalham na limpeza e recuperação do pavilhão 4, principal palco do massacre de Alcaçuz — Foto: Anderson Barbosa/G1
Manipulação emocional

No dia da visita da missão às unidades, a equipe foi comunicada que os presos haviam construído um estande de tiros para o treinamento dos agentes penitenciários que haviam sido recentemente aprovados em concurso público. E com isso, segundo o relatório, a verificação imediata de dois problemas. O primeiro é que esse trabalho também não resultou em remição de pena para nenhum dos presos que realizaram a obra. E o segundo, que o estande fica muito próximo dos pavilhões 1, 2 e 3 de Alcaçuz, “sendo perfeitamente audível, por todos que estão em todo o complexo penitenciário, os ruídos provocados pelo treinamento”.

O MNPCT considerou esta atividade uma “técnica de manipulação emocional, cognitiva e sensorial que, a despeito de não deixar marcas visíveis no corpo da pessoa presa, produz um quadro de medo e ansiedade permanente no coletivo de presos, pois todos são constantemente lembrados que, no caso de uma intervenção real, eles serão os verdadeiros alvos”.

Silêncio obrigatório

Pelo que foi constatado pela missão que visitou Alcaçuz/Rogério Coutinho Madruga, os presos são proibidos de falar e até de olhar para os agentes, sob o risco de sofrerem punições severas. O relatório diz que “esta realidade foi nitidamente evidenciada em vários momentos. As pessoas presas só falaram com a equipe quando autorizadas por agentes penitenciários”.

“Não é permitido que as pessoas presas sequer olhem diretamente para o rosto dos agentes penitenciários ou demais servidores da unidade. Assim, são obrigados a permanecer de cabeça baixa durante qualquer interação com estes profissionais”, complementa o relatório.
Desnudamento de presos no complexo Alcaçuz/Rogério Coutinho Madruga são constantes, segundo a missão  — Foto: G1/RN
Desnudamento

Não bastasse a revista vexatória da qual são obrigadas a se submeter mulheres e crianças que visitam seus parentes encarcerados, a missão que visitou os presídios também se deparou com outra grave situação: o desnudamento de detentos. E isso, muitas vezes, na presença de agentes femininas.

Consta no relatório que “sempre que presos se deslocam de suas celas para ir e voltar ao pátio destinado ao banho de sol, eles são forçados a caminharem completamente desnudos, enfileirados bem próximos uns dos outros, com as cabeças baixas, os troncos curvados, com uma das mãos segurando sua bermuda e a sacudindo, enquanto que a outra mão toca no ombro da pessoa em sua frente, resultando assim na total exposição da genitália durante um considerável percurso de deslocamento dentro dos edifícios prisionais”.

Chamou ainda a atenção da equipe a presença de várias agentes penitenciárias que também conduziam as revistas, não havendo preocupação alguma com as diferenças de gênero em relação à nudez dos homens. “A prática obriga os homens presos a ficarem completamente nus pelo menos duas vezes em ambientes abertos sem qualquer privacidade, em formato de fila e na presença de agentes públicas mulheres, denotando um cenário de grave preocupação”, ressalta a equipe.

Este tipo de conduta, ainda de acordo com missão, “cria um ambiente de profundo constrangimento, humilhação, que agride a autoestima, subjuga e provoca intenso sofrimento psíquico da pessoa presa, de forma que atende aos requisitos de configuração de tortura”.

Tortura postural

Ao entrar nos pavilhões 1 e 3 de Alcaçuz para observar o interior das celas, a equipe da missão identificou que os presos já se encontravam em uma posição denominada de ‘procedimento’, no qual o preso fica sentado no chão, de costas para o corredor de acesso à entrada da cela. Assim, eles formam múltiplas filas paralelas, e permanecem com os dedos das mãos entrelaçados e posicionados atrás da nuca, com as cabeças abaixadas e testas encostadas nos joelhos, que ficam dobrados na região do peito. “Trata-se, portanto, de obrigar as pessoas a ficarem em uma posição semifetal”, resume o relatório.

“Adota-se esta prática de forma regular e cotidiana nas penitenciárias de Alcaçuz e PERCM, muitas vezes como exercício para avaliação do condicionamento dos comportamentos dos presos, ou seja, para saber se os presos lhes obedecem. Assim, não parece se justificar por alguma necessidade específica de segurança, que pudesse dizer respeito a finalidades operacionais em situações-limite (como conflitos, motins ou rebeliões) ou situações congêneres", diz o relatório.

"O mero comando oral por parte de algum agente penitenciário que grita “Procedimento!” já obriga os presos a adotarem a posição corporal citada, permanecendo na mesma pelo tempo determinado pelos agentes. Podem ocorrer “procedimentos” diversas vezes durante o mesmo dia, com durações variáveis, o que se pode caracterizar como posição de estresse. Logo, a prática tende somente a degradar, ultrajar e subjugar as pessoas presas, caracterizando-se como tratamento desumano e degradante, tendente à tortura”, complementa.

E acrescenta: “Igualmente, na Penitenciária de Abu Ghraib as posições de estresse (stress positions), também conhecidas como método de tortura postural, em que a pessoa permanece numa postura corporal incômoda por um longo período. É possível afirmar que a prática dos procedimentos adotada tanto em Alcaçuz, como na PERCM, mostra uma rigidez do regime disciplinar que extrapola a perspectiva legal e não possui diretrizes mínimas de garantias, de transparência, de publicidade e de dignidade para as pessoas presas”.
Missão considera que a posição denominada de ‘procedimento’ pela Sejuc consiste em tortura postural — Foto: Anderson Barbosa/G1
Sem reparação

"Chama atenção o fato de que nenhuma das 26 famílias das pessoas presas que a Secretaria de Justiça reconheceu como mortas no massacre, recebeu medidas de reparação. A Defensoria Pública alega que não foi procurada. No entanto, nesses casos, o Estado tem obrigação de fazer uma busca ativa dos familiares das vítimas e providenciar a assistência psicológica, social e financeira, afinal essas pessoas morreram sob sua responsabilidade", observa Acassio Pereira de Souza, membro do Comitê.
Famílias dos 26 detentos mortos no 'Massacre de Alcaçuz' não foram indenizadas — Foto: Divulgação/PM
Semelhanças com Abu Ghraib

“Em Abu Ghraib, falar sem autorização resultava em severas sanções disciplinares, incluindo tortura postural (com algemas ou amarras) e outros. O nível de superlotação foi qualificado de “confinamento como ovelhas”. Procedimentos de desnudamento de detentos homens conduzidos por mulheres responsáveis por sua custódia, combinados com práticas humilhantes foram regulares, atos libidinosos e registros fotográficos foram rotineiros. Além disso, espancamentos, sessões de tortura e mortes de pessoas sob custódia foram números e correlacionados diretamente com os abusos cometidos”, destaca o relatório.

A missão disse ainda que a lógica da administração prisional na Penitenciária de Abu Ghraib também apresenta outros paralelos notórios com as unidades potiguares. “A dinâmica de condicionamento de comportamento por comandos verbais e gritos de agentes de custódia é similar. Ademais, até o uso de tecidos que cobrem o rosto e impedem a identificação dos agentes públicos por meio de keffiyehs em Alcaçuz possui inegável correlação com o uso desse acessório de origem árabe por parte de militares dos EUA em Abu Ghraib, uma região desértica”.

“Assim, o Mecanismo Nacional registra seríssimas semelhanças entre as práticas de tortura e maus-tratos desenvolvidas pelas Forças Armadas dos EUA na Penitenciária de Abu Ghraib e os procedimentos adotados nas Penitenciárias de Alcaçuz e PERCM. Neste sentido, salienta-se que as práticas adotadas nas Penitenciárias de Alcaçuz e PERCM podem ser consideradas aos crimes de tortura e maus-tratos tipificados na legislação penal brasileira”.

Monte Cristo (RR)
Penitenciária Agrícola de Monte Cristo — Foto: Inaê Brandão/G1 RR
Venezuelanos dividem celas com brasileiros

O relatório revela ainda que venezuelanos estão custodiados entre brasileiros na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, localizada na zona rural de Boa Vista, em Roraima. O local foi palco de massacres em outubro de 2016 e janeiro de 2017, que resultaram na morte de 43 presos.

De acordo com o relatório, o número de detentos venezuelanos na unidade é incerto. Uma estimativa feita junto aos próprios presos sugere que, em fevereiro deste ano, quando a inspeção foi feita, haviam pelo menos 60 migrantes da Venezuela entre os 1.150 homens aprisionados na penitenciária. O quantitativo, porém, não é oficial, uma vez que a Secretaria de Justiça e Cidadania de Roraima – órgão que controla o sistema carcerário do estado – não dispõe de dados sobre estrangeiros presos no estado.

Roraima é a porta de entrada no Brasil para os venezuelanos que tentam fugir da grave crise econômica que assola o país. Segundo o IBGE, existem mais de 30 mil venezuelanos vivendo em Roraima. A maioria não possui emprego formal e busca refúgio em abrigos espalhados pelo estado para sobreviver no país.
Lesões corporais decorrentes de doenças de pele desenvolvidas pelas más condições de limpeza e higiene na Penitenciária Agrícola Monte Cristo — Foto: MNPCT
A presença de estrangeiros em Monte Cristo não está restrita aos venezuelanos. A inspeção da equipe técnica do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura encontrou ainda um sírio e dois guianenses dividindo cela com presos brasileiros. “A situação dos estrangeiros privados de liberdade é bastante frágil e mereceria uma atenção especial por parte dos atores do sistema de justiça competentes para atuar na temática”, aponta o relatório.

Para os técnicos, “a prisão não pode ser a resposta para a crise enfrentada neste momento pelo estado. Ademais, os estrangeiros possuem grande dificuldade para compreender a língua e os trâmites do sistema de justiça brasileiro, aprofundando ainda mais sua vulnerabilidade. Importante ressaltar que essas pessoas são encaminhadas para uma unidade que já foi palco de duas rebeliões gravíssimas, além de ser um local de violação constante dos direitos humanos, além de não lhes ser garantido o acesso à justiça”, destaca.

Condições insalubres

Além da presença de estrangeiros entre os presos brasileiros, a missão reencontrou uma série de irregularidades em Monte Cristo e na conduta aplicada pelos agentes de segurança que atuam na unidade.
Esgoto a céu aberto ao lado de celas onde estão os detentos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo — Foto: MNPCT
O parecer reforça problemas citados em documento anterior publicado após a visita realizada em 2017. São incongruências que vão, desde a ausência de oferta de água potável nas celas até a entrega de comida estragada para os detentos. A missão cobra a aplicação de medidas emergenciais por parte do governo estadual, da Sejuc, do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Roraima, no sentido de solucionar estes problemas.

“A equipe da missão conjunta alarmou-se com a infraestrutura da unidade, que é bastante antiga, e que apresentava um aspecto de abandono e espaços altamente degradados e degradantes. No dia da inspeção a situação era ainda mais grave, pois a unidade estava tomada por lixo formado por restos de comida e embalagens de quentinha, com bichos e insetos”, denuncia o relatório.
No dia da inspeção, unidade estava tomada por lixo formado por restos de comida e embalagens de quentinha, com bichos e insetos — Foto: MNPCT
A inspeção ainda encontrou sinais do uso de armamento letal por policiais militares e agentes penitenciários dentro das celas de Monte Cristo. A prática pode configurar indícios de aplicação de tortura física e psicológica na unidade.

“Foi encontrada uma quantidade bastante impressionante de projéteis de munição menos letal espalhados pelo chão da unidade, assim como muitos presos com marcas em seus corpos nas duas visitas realizadas. Adicionalmente, a equipe de Missão observou pequenos projéteis esféricos brancos espalhadas pela unidade, inclusive perto da sala dos agentes, além de pessoas privadas de liberdade com marcas que estariam sendo utilizadas em Monte Cristo armas de ar comprimido, que não são equipamentos menos letais admitidos para tal finalidade. Em diálogo com a Sejuc, a equipe foi informada que este tipo de armamento não seria fornecido pelo Estado, demonstrando falta de controle em relação ao tipo de armamento e a forma como estes são utilizados no interior da unidade”, aponta.

Anísio Jobim (AM)
Vista aérea do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus — Foto: Luana Borba/Rede Amazônica
Deficiências em unidade do Amazonas

Situações de precariedade evidenciadas nas visitas realizadas na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, também foram identificadas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, localizado em Manaus, capital amazonense. O complexo foi vistoriado na primeira semana de fevereiro deste ano pela comissão integrada do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

O Complexo Penitenciário Anísio Jobim foi palco de um massacre que culminou na morte de 56 presos no início de 2017. A unidade apresenta problemas por não oferecer um sistema de água potável perene, atendimento de saúde regular, medicamentos, produtos de higiene, alimentação e condições de educação e trabalho para os presos. Além disso, no período da inspeção, não havia horário e local específico para a visita íntima e para a visita das igrejas para assistência religiosa.

Por outro lado, de acordo com o relatório, foram tomadas “providências para evitar a violência interna dos presídios, como a instalação de câmeras e aumento do efetivo de segurança, tendo sido observadas, durante a visita, medidas arquitetônicas para criar etapas de acesso às áreas internas que ampliaram o controle e segurança, assim como a instalação de equipamento de bodyscan”.

O texto acrescenta que “foi identificado pela equipe de Missão que a Polícia Militar tem atuado em casos de revistas periódicas ou situações de crise, assim foi considerado que houve providências relevantes para a retirada da PM da rotina prisional, porém a questão do seu emprego nas revistas ainda é um fator de tensionamento no dia-a-dia que deve ser repensado”. A presença de policiais militares no interior do presídio, ainda que ocasionalmente e realizada por Grupos Especiais da PM, é fator de preocupação no relatório pela falta de protocolo específico e a distinta finalidade que tem a polícia das atividades da custódia prisional. Foram registrados pela equipe denúncias da OAB local relacionadas a violência e excessos nessas abordagens no Compaj.

Visitantes

A abordagem com os visitantes gerou preocupação para a Comissão que inspecionou o Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Problemas com o acesso à Penitenciária, em função de poucos horários do transporte interno que obriga familiares a andar a pé por alguns quiômetros, ou falta de informações sobre seus parentes presos, foram observados pela equipe. O relatório registra o caso do desaparecimento de uma mulher que se deslocava entre a entrada do Complexo e a Penitenciária, na via conhecida como Ramal. O caso foi relatado por familiares de detentos, durante reunião de avaliação, e confirmado pelas autoridades do estado do Amazonas. Não há informações sobre o paradeiro da visitante.

Familiares relatam que mulheres e crianças precisam fazer o translado para poder visitar seus entes, muitas vezes carregando sacolas com mantimentos. O relatório pede providências para elucidar o caso do sumiço da visitante e soluções para regularizar o transporte dos visitantes.

O massacre

Não há procedimento investigatório para apurar responsabilidades de agentes do estado no maior massacre prisional do amazonas. O relatório informa ainda que, em documento de 2016, o MNPCT já havia apontado "grave risco de conflitos e mortes". E que a Ouvidoria Penitenciária do Amazonas e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, conforme noticiado na imprensa da época do massacre, também teriam alertado para a gravidade da situação.

do G1 RN

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