Estudo inédito realizado pelo Instituto Alziras indica que elas têm vasta experiência política, mais anos de estudo do que os prefeitos, mas encaram preconceitos próprios de uma sociedade machista
“A mulher vive muitos preconceitos em vários espaços, na vida profissional, na vida social. Mas no meio político a gente sofre muito. É um espaço onde os homens acham que a gente não tem capacidade de administrar uma cidade." O desabafo é da educadora Tânia Portugal, prefeita de São Sebastião do Passé (BA) entre 2005 e 2012.
Tânia diz ter encarado ataques que seriam inimagináveis para um homem na mesma função durante suas duas gestões à frente da cidade de 46 mil habitantes, a 56 quilômetros de Salvador. "As pessoas tentam desqualificar o trabalho. E a gente precisa tentar se impor pra poder legitimar nossas ações.”
Segundo a ex-prefeita, filiada ao PCdoB, na falta do que falar sobre competência técnica e profissional, as pessoas começam a desqualificar na parte pessoal. "Você é chamada de descarada, é chamada de sapatona. Se a mulher é muito aberta, comunicativa é descarada. Se é mais retraída é sapatona. É um negócio louco, que homem nenhum vive.”
Os ataques, diz, sempre tentavam atingir sua vida pessoal. “Na capacidade de trabalho eu não sofri muito porque eu me apresentava. Eu dizia que queria e fazia.”
Pedagoga com mestrado em Educação, Tânia é a personificação do que foi apurado pelo Instituto Alziras na pesquisa Perfil das Prefeitas no Brasil. Segundo o levantamento, 71% têm ensino superior, enquanto entre os prefeitos esse índice é de 50%; 42% delas têm ainda pós-graduação e experiência. Mesmo assim, as mulheres, que são 51% da população, governam apenas 11% das 5.570 cidades brasileiras, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Estão à frente de cidades pequenas e com Produto Interno Bruto (PIB) baixo.
No poder, os principais desafios apontados pelas prefeitas são assédio ou violência política, indicados por 53% das pesquisadas. “Ninguém chama um homem, como chamaram a presidenta Dilma, de vaca. Sempre tentam desqualificar a mulher. Isso a gente sofre. Não sofri agressão física, mas essa violência sutil a gente sofre bastante. E de tabela a família sofre conosco”, relata a ex-prefeita de 53 anos, nascida em São Sebastião do Passé.
O estudo, lançado na terça-feira (13), no Rio de Janeiro, ouviu 45% das 649 prefeitas do Brasil, entre maio e julho deste ano e contou com apoio da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Associação Brasileira de Municípios (ABM) e financiamento do Instituto Clima e Sociedade (iCS) e MRS Logística.
“Compreender as experiências das mulheres na política municipal é extremamente importante porque a prefeitura é porta de entrada e base da construção de parte significativa das carreiras políticas”, diz Michelle Ferreti, uma das fundadoras do Instituto Alziras, organização que tem o objetivo de desenvolver ferramentas para contribuir para o aumento da participação das mulheres na política.
“Você vai sofrendo os preconceitos, mas ao mesmo tempo vai se firmando e se afirmando nesse espaço. Ouvi piadinhas, desqualificação. Mas o se firmar e se afirmar constantemente a gente vai mostrando o trabalho, ações que a gente desenvolve”, diz Tânia Portugal. Foi assim que ela garantiu sua reeleição em 2008. “Já tem dois mandatos que saí. Ando nas ruas e a população diz ‘eu era feliz e não sabia’.”
A ex-prefeita foi responsável, por exemplo, por levar a São Sebastião a Farmácia Popular, programa do governo federal que garantia aos cidadãos medicamentos de uso contínuo até 90% mais baratos.
“Quando Jaques Wagner assumiu o governo (baiano) pela primeira vez, fizemos uma luta e conseguimos incluir nossa cidade na região metropolitana de Salvador”, conta a ex-prefeita. “Por ser um município com população pequena, assim a gente passou a entrar em alguns programas voltados para a região e isso ajudava.”
Experiência e inspiração feminina para encarar desafios
Professora da Universidade do Estado da Bahia e prestando assessoria de Planejamento e Gestão na Secretaria Estadual do Trabalho, Tânia faz militância política desde os 15 anos de idade. “Na minha família temos mulheres fortes, decididas, isso foi determinante para mim.”
Sua trajetória teve início na Diretoria de Cultura de São Sebastião do Passé. Eleita vice-prefeita em 2004, foi a primeira no cargo, assim como à frente da prefeitura nos 92 anos de existência da cidade.
O levantamento do Instituto Alziras revela que 70% das prefeitas em exercício no país haviam ocupado cargos públicos anteriormente, quase um terço havia sido vereadora. E essa atuação abre espaço para a entrada de outras mulheres na política: 55% das entrevistadas possuem um secretariado composto por pelo menos 40% de mulheres.
“Quando uma mulher ocupa um cargo político, ela cria condições subjetivas e também objetivas para que outras também possam ocupar esse espaço”, diz Michelle Ferreti.
Governar uma cidade com até 50 mil habitantes é uma realidade para 91% das prefeitas eleitas em 2016 que, somadas, governam apenas 7% da população do país. Enquanto a média de PIB per capita dos municípios governados por prefeitas é de R$ 17,8 mil, aqueles que governados por homens têm média de R$ 19,7 mil.
Daniela de Cássia Santos Brito (PSB) é outra mandatária cuja trajetória e realidade confirmam os dados da pesquisa. Desde 2012 à frente da administração de Monteiro Lobato, cidade de pouco mais de 4 mil habitantes na região de Campos do Jordão (SP), ingressou na Prefeitura Municipal no ano 2002. Antes, foi secretária de gabinete e responsável pela Secretaria de Cultura e Turismo do município.
Formada em Pedagogia e pós-graduada em Gestão de Políticas Sociais pela FMU, atuou por três anos, entre 2008 e 2011, como técnica regional do Fundo Social de Solidariedade do Governo do Estado de São Paulo, no gerenciamento de regiões do Vale do Paraíba e Campinas. Em 138 anos desde a emancipação política de Monteiro Lobato, é a primeira mulher a liderar o governo lobatense.
Apesar de todo o preparo e do reconhecimento popular que a premiou com a reeleição em 2016, Daniela também enxerga várias barreiras para a atuação da mulher na vida pública. “Uma delas é o conservadorismo dos partidos políticos. A figura feminina ainda não está completamente inserida nos processos democráticos”, avalia, dando como exemplo a diferença de investimentos nas campanhas de candidatos homens e candidatas mulheres. “Isso revela um cenário que impossibilita a concorrência de 'igual para igual' na ocupação dos cargos de prefeitas, vereadoras, deputadas, governadoras e até mesmo a presidência.”
Mas nada que a assuste. “Todas essas dificuldades reafirmam a responsabilidade da mulher na liderança de um governo e na representatividade feminina na esfera política. Precisamos abrir cada vez mais espaço!”
O preconceito de gênero, para Daniela, é uma forma de violência. “A mulher fora do ambiente doméstico sempre foi vista como intrusa. Ultrapassar esses preconceitos e marcar territórios é vencer um dia de cada vez e ser a inspiração para outras mulheres que passam ou já passaram por situações constrangedoras na vida política.”
Casada, Daniela tem um filho de 17 anos e duas enteadas. Assim como Tânia Portugal, sofre com a interferência da carreira pública na vida pessoal. “Governar uma cidade requer atenção diária. É necessário buscar soluções e recursos em diferentes esferas, visto a baixa receita financeira de Monteiro Lobato. Isso implica em estar atenta a todas as questões da população. Trata-se de uma outra família para administrar, com problemas, necessidades e imprevistos.”
Apesar de tudo, 55% das pesquisadas pelo Instituto Alziras dizem ter interesse em prosseguir na carreira política. “Precisamos mapear as dificuldades enfrentadas pelas prefeitas para podermos traçar estratégias e criar ferramentas que contribuam para o aumento da participação feminina na política brasileira”, afirma Michelle.
Reflexo da sociedade, prefeitas negras sofrem mais
As mulheres negras representam 27% da população, mas governam apenas 3% das cidades brasileiras. Entre as 298 prefeitas ouvidas pela pesquisa, 36% se declararam pretas ou pardas. A maioria delas está à frente de cidades do Nordeste.
Participam há menos tempo do cenário político: 74% está em seu primeiro mandato, enquanto entre as brancas essa porcentagem é de 56% .
Por outro lado, pretas e pardas têm mais experiência na gestão pública: 75% já ocuparam cargos não eletivos ou de confiança no governo. Entre as brancas, o índice é de 68%.
As negras também herdam menos capital político da família: 44% das prefeitas pretas ou pardas não possuem qualquer familiar eleito. Mas essa é uma realidade para 33% das brancas.
Principais conclusões da pesquisa
Elas são preparadas para o cargo:
• 70% já ocuparam cargos públicos não eletivos ou de confiança, principalmente em áreas como assistência social (27%), educação (20%) e saúde (20%).
• 66% das prefeitas ocuparam cargos de confiança no poder executivo, sendo que 23% delas comandaram Secretarias de Governo.
• um terço das prefeitas já foi eleita para outros cargos: 29% das prefeitas já foram vereadoras e 14 % foram vice-prefeitas.
• 71% das prefeitas têm ensino superior (enquanto apenas 50% dos prefeitos tem ensino superior).
• 42% das prefeitas têm pós graduação.
São batalhadoras:
• as prefeitas estão nos municípios menores e mais pobres. Receita tributária per capita média dos municípios governados por mulheres: R$ 199,04. Por prefeitos: R$ 245,08.
• as prefeitas precisam de mais recursos para se eleger: de R$ 7,10, ante R$ 6,15 para os prefeitos.
Dificuldades:
• 53% - reconhecem que já sofreram assédio ou violência política
• 48% - falta de recursos para a campanha
• 22% - falta de apoio do partido ou base aliada
• 24% - falta de espaço na mídia
Pretas e pardas (conforme denominação do IBGE):
• 45% são pretas e pardas, a maioria no Nordeste
• 74% está em seu primeiro mandato. Entre as brancas, a porcentagem é de 56%
• 75% de mulheres pretas e pardas já haviam ocupado cargos de confiança. Entre as brancas, o índice é de 68%.
• 44% não possuem qualquer familiar eleito. Entre as brancas, a porcentagem é 33%
Não são fantoche de marido:
da RBA
• apenas 36% das prefeitas possuem marido que já foi eleito para algum cargo na política. Em 21% dos casos, ele foi prefeito (o que, não pode ser considerado demérito, já que ter familiares na política é comum para mulheres e homens eleitos na política brasileira)
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